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Moradora do D. Aquino mantém nascente dentro do quarto

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Moradora do D. Aquino mantém nascente dentro do quarto

Rodrigo Vargas/O Livre

fonte azul

Marisa Pereira da Costa, moradora do bairro Dom Aquino: nascente dentro de casa

Sem chuvas há 90 dias. Umidade abaixo de 20%, semelhante à de um deserto. Nas lojas de departamento, pilhas de umidificadores de todos os preços e modelos a dominar as prateleiras.

Por todos os cantos de Cuiabá, a natural secura dos meses de julho a setembro é enfrentada pelos moradores com resignação e improviso: panos molhados nas janelas, garrafas PET e baldes cheios d’água pelos corredores.

Em ao menos um endereço da cidade, porém, nenhum paliativo é necessário. Na casa de número 168 da rua Pimenta Bueno, no bairro Dom Aquino, a família da diarista Marisa Pereira da Costa dorme e acorda ao redor de uma fonte natural de água corrente e cristalina.

Uma nascente, de onde brotam mais de 70 mil litros de água todos os dias e que fica bem no meio do quarto, cercada por camas de solteiro e de casal, e protegida por um deck de madeira.

“A gente dorme ouvindo o barulhinho da água a correr”, diz a sorridente e espevitada Marisa, 61 anos de vida, sendo os últimos doze pertinho do que chama de “belezura”. “Essa fonte aqui é um privilégio”.

Rodrigo Vargas/O Livre

fonte azul

Nascente gera 70 mil litros de água por dia: única fonte de água da família e “remédio” para moradores da região

A água que nasce dentro do quarto é tão abundante que os cinco integrantes da família não conseguem sozinhos dar conta do fluxo. O excedente escorre por um cano que leva a uma pequena bica de pedra no lado de fora, rente à calçada.

Logo acima, na parede da casa, uma placa de madeira informa se tratar da “Fonte Azul”. Marisa explica: “De manhãzinha, se você usar uma garrafa bem transparente, vai notar um azuladinho”, relata.

Moradores de vários lugares da cidade, conta ela, procuram a fonte em busca de suas supostas propriedades medicinais. Ela garante que o líquido é “poderoso”, capaz de curar gastrite e fortalecer a pele e os cabelos. “É melhor que xampu Seda”, diz.

“A gente dorme ouvindo o barulhinho da água a correr. Essa fonte é um privilégio”

No quarto, a temperatura é naturalmente amena. E a umidade não é excessiva, segundo ela. “Não temos problema com mofo. É tudo sequinho e asseado”, afirma.

Coletada por intermédio de uma bomba elétrica e, às vezes, uma chaleira, a água da fonte azul serve para tudo na casa de Marisa: do banho à cozinha. A concessionária municipal de água, segundo ela, passa longe dali.

“Enquanto estiver aqui, a única água que iremos usar será essa. Não adianta vir com história de CAB para o meu lado. Aqui não precisa”, brada.

A economia com a água é providencial. Com três filhos atualmente desempregados e contando apenas com uma modesta aposentadoria do marido, Marisa se vira como diarista e produz artesanato para fechar as contas do mês. Nem sempre é o suficiente.

Rodrigo Vargas/O Livre

fonte azul

Casa no bairro Dom Aquino atrai a curiosidade de moradores: oásis em meio ao clima seco de Cuiabá

Fã declarada de livros, tem em casa uma pequena biblioteca que reuniu a partir de doações e também de volumes que encontrou jogados no lixo. “Eu recolho, limpo e guardo aqui porque eu gosto e a gente sempre precisa”, sorri. “Já sonhei que montava uma biblioteca para os idosos aqui do bairro.”

Os sonhos da diarista, ultimamente, têm ficado em suspenso. A casa pertence a um primo que hoje mora em São Paulo. Vivendo de favor no local, ela conta que recentemente recebeu do parente a notícia de que terá em breve que desocupar o imóvel.

“A casa não é minha, então tenho que desocupar mesmo. Tá certo. Mas vou sentir muita falta da minha água”.

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Água para o futuro

Relativamente famosa na região, a nascente dentro do quarto de Marisa entrou para as estatísticas oficiais por meio do projeto “Água para o futuro”, que desde 2015 identifica os mananciais urbanos da capital.

O projeto, conduzido pelo Ministério Público Estadual, já catalogou até o momento um total de 152 nascentes. O trabalho tem a participação dos moradores que, por meio de um aplicativo para celular, podem mandar fotos e a localização de possíveis fontes.

“A gente recebia muitas informações isoladas sobre degradação de nascentes e notávamos uma ineficiência total do poder público em sua proteção”, relatou o promotor Gerson Barbosa, da 17ª Promotoria de Defesa da Ordem Urbanística e do Patrimônio Cultural de Cuiabá, em entrevista concedida em maio ao LIVRE.

Dona Marisa diz que a água
que brota ali cura gastrite,
é boa para a pele e ‘melhor
que xampu Seda’

Cada nascente e um mínimo de 50 metros de seu entorno são considerados Área de Preservação Permanente (APP) pela Lei Federal nº 12.651/2012 – intervenções são permitidas apenas em casos de utilidade pública, interesse social ou de baixo impacto ambiental.

Após perícia para constatar que se trata de um afloramento natural (e não de um vazamento da rede de água, por exemplo), os proprietários do terreno são notificados das restrições de uso e, no caso de áreas alteradas, das medidas de mitigação dos danos.

A visita à casa onde mora a diarista ocorreu há poucas semanas e constatou que a fonte é mesmo de origem natural. Não foram realizadas análises da qualidade da água que brota por ali.

Nos mais de 44 pontos que haviam sido avaliados neste sentido até o mês de maio, o MPE constatou que 98% deles sofriam com uma ou várias formas de degradação (esgoto, lixo, entulho de construção, aterramento ou drenagem).

Na expectativa de deixar a casa, Marisa diz ver com bons olhos a iniciativa da promotoria. “Tem que proteger mesmo, pois as pessoas não dão valor. Eu fiz a minha parte: nos 12 anos que moro aqui, deixei crescer o verde, as plantas, não cortei nada. A fonte, que era mirradinha, virou essa belezura”.

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