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Meses após resgate, trabalhadores vivem recomeço

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Meses após resgate, trabalhadores vivem recomeço

Ednilson Aguiar/O Livre

Trabalho escravo, curso de qualificação senar

Trabalhadores resgatados em situação degradante: oportunidade de recomeço após o trauma

A oferta chegou pelo WhatsApp. Um contrato de trabalho de 50 dias, com salário de 1,3 mil, mais horas extras e adicional noturno por “serviços gerais” em um grande armazém de soja. Tudo com carteira assinada.

Desempregado, Marcos Paulo Bueno Lucinda, 20 anos, não perdeu tempo. “Pegaram meu nome e, logo no outro dia, me ligaram dizendo que o rapaz do sindicato ia nos buscar para começar o serviço, mas não falou onde era exatamente”, relata.

De Nobres, onde mora, até o município de Nova Maringá, onde fica uma das unidades da gigante chinesa COFCO Agri, foram 300 quilômetros de viagem juntamente com dezenas de outros trabalhadores de várias localidades da região.

Entre eles, estava Diogo Juliano de Lima, 20, morador de Lucas do Rio Verde. Também desempregado, e com uma filha pequena para sustentar, ele foi advertido de que o ritmo de trabalho seria “puxado”. “Eu falei: vamos tentar, tô precisando de dinheiro, tenho uma filha e não posso escolher”, afirma.

Chegando à sede da empresa, ambos logo descobririam que o cenário era bem diferente do prometido. O pagamento combinado, por exemplo, não incluía nenhum acréscimo por horas extras ou no turno da noite. “O encarregado só disse que seriam 50 dias direto”, relata Marcos. “E a carteira não era assinada. Era só um papel que colaram e carimbaram, dizendo que era trabalhador avulso, sem direito a nada, de domingo a domingo”.

Ao chegar ao alojamento no qual iriam passar os quase dois meses de contrato, nova decepção: paredes de madeira, lama pelo chão e beliches amontoados em um espaço reduzido. “A condição era muito precária”, diz o alagoano Jadielson Antônio da Silva, 31, outro que também foi atraído pela oferta de emprego. “Era uma casa pequena, um banheiro para 30 funcionários e sem ventilador. A gente tinha que dormir com os pernilongos”.

“A carteira não era assinada. Era só um papel que colaram e carimbaram, dizendo que era trabalhador avulso, sem direito a nada, de domingo a domingo”

A comida era de má qualidade, contam. “Eram três conchas de arroz para um pedaço de carne, feijão era um caldinho, quando tinha”, relembra Diogo. “E era a mesma todo santo dia, almoço e janta. Tinha que comer porque não havia outra escolha”.

Os trabalhadores atuavam em várias etapas da operação da empresa. Do descarregamento de caminhões de soja à limpeza de tanques e do forno de secagem de grãos. Os grupos foram divididos em turnos diários (das 7h às 15h, das 15h às 23h e das 23h às 7h), sem folgas nos finais de semana.

Quem se queixava das condições de trabalho, afirma Marcos, era agredido verbalmente, ameaçado de demissão e até de castigos físicos. “Eu tive que entrar para a fazer a limpeza de soja em um poço, sendo que eu não tinha treinamento para isso. Eu me recusei e vieram com ameaça de demissão e até de me bater”, relata.

MPT/SRT

Cofco Agri

Sede da Cofco Agri, em Nova Maringá: acordo com sindicato foi considerado irregular

Os que pediam desligamento, eram avisados de que haveria descontos. “Se alguém fosse embora com menos de 15 dias trabalhados, descontavam tudo: EPI [equipamento de proteção individual], alimentação e até o exame médico. Então você se sentia obrigado a ficar ali pelo menos um mês, senão ia trabalhar 15 dias sem receber nada”, conta Diogo.

Todos haviam sido recrutados entre fevereiro e março pelo Sindicato dos Trabalhadores de Movimentação de Carga de Nova Maringá. À ocasião, a entidade firmara um acordo com a COFCO Agri para arregimentar pessoal com base na chamada Lei do Avulso (nº 12023/09).

MPT/SRT

Trabalho escravo

Fiscalização encontrou alojamentos precários e banheiro em péssimas condições

As condições formais da contratação, porém, não seguiam os requisitos da lei, criada para regular as relações de trabalho de curto prazo (caso dos períodos de safra). Além de não envolver mais de uma empresa, o acordo não havia sido submetido a uma assembleia pelo sindicato.

No final de março, trinta e um trabalhadores foram resgatados em uma ação conjunta da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Mato Grosso (SRTE/MT), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Gerência de Operações Especiais (GOE) da Polícia Civil.

“O caso atrai uma atenção particular por envolver várias nuances do trabalho escravo contemporâneo, como o aliciamento de trabalhadores, a precariedade dos alojamentos, a falta de saneamento básico e água potável(…) e de ter sido o sindicato um dos exploradores dessa forma de trabalho”, afirmou o MPT, em nota à ocasião.

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A empresa foi autuada e obrigada a reconhecer o vínculo empregatício e pagar as rescisões integrais, e de imediato, aos resgatados. “A lei do avulso foi utilizada e desvirtuada para buscar aparência de legalidade”, afirmou o auditor-fiscal Luis Alexandre de Faria, que coordenou a operação.

Vida Nova
Três meses depois daquele episódio, a reportagem do LIVRE encontrou Marcos, Diogo, Jadielson e outros 15 remanescentes em uma sala de aula, às vésperas da formatura em um curso de manutenção de máquinas e tratores agrícolas. Além da capacitação técnica, recebiam aulas sobre direitos trabalhistas, relacionamento interpessoal, ética e empreendedorismo.

Concluído nesta semana, o curso faz parte do projeto Ação Integrada, desenvolvido pelo MPT, SRTE-MT e a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). A realização contou, ainda, com a parceria do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) e o Sindicato Rural de Cuiabá. As aulas começaram no dia 2 de maio, no Parque de Exposições da Acrimat, em Cuiabá. No período, cada aluno recebeu três refeições diárias, além de alojamento fornecido pela Pastoral do Migrante.

Desde 2009, o projeto capacitou quase 700 trabalhadores. A reinserção deles no mercado não é garantida. Tampouco há certeza de que não venham a se encontrar novamente em situações degradantes, análogas à escravidão.

Por isso mesmo, o advogado Pablo Friedrich de Oliveira, coordenador executivo do programa, diz que o primeiro passo é a recuperação da autoestima dos resgatados. “Eles vêm de uma situação de exploração. Então o primeiro cuidado é conversar, orientar sobre seus direitos e recuperar neles o valor de cidadão”, relata.

Marcos descreve o curso como uma “oportunidade única” e assegura que não irá mais aceitar ofertas de emprego sem uma pesquisa prévia. “É preciso saber bem, conhecer mesmo a empresa, a forma como ela trabalha, se ela age certo. Essa que eu fui já tinha histórico de coisas até piores. Só que eu não sabia”.

Revisão de processos
Em nota ao LIVRE, a assessoria da COFCO Agri disse que a empresa “optou por um modelo lícito de contratação mediante intermediação obrigatória do sindicato local”.

“Portanto, não submeteu os trabalhadores a condições degradantes. Mesmo assim, antes de ser notificada pelo Ministério do Trabalho e Emprego tomou medidas para adequar a situação”, disse, em um trecho.

A empresa disse “lamentar” o ocorrido e que “repudia” qualquer “circunstância que comprometa as boas condições no ambiente de trabalho”. “[A empresa] informa que está revisando todos os processos relacionados à contratação e gestão das operações que envolvem fornecedores”.

A nota menciona, ainda, que a empresa investe em projetos de “educação, capacitação e transformação socioambiental”. “Essas iniciativas beneficiam anualmente mais de 14 mil pessoas nas regiões e comunidades onde a empresa atua no Brasil.”

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