Mato Grosso

“Zero km” se torna referência como ponto de prostituição no Brasil

14 minutos de leitura
“Zero km” se torna referência como ponto de prostituição no Brasil
(Foto: Ednilson Aguiar/O Livre)

Um quarteirão em forma de quadrado, rodeado por bares e motéis e repleto de pessoas cuja profissão é a prostituição, assim poderia ser resumido o Zero km, em Várzea Grande.

Mas não é apenas isso, nesse lugar há vidas repletas de histórias, que vão além das roupas curtas e dos olhares convidativos de cada uma das mulheres ali presentes.

A reportagem do O Livre conversou com cinco garotas de programa – quatro mulheres, sendo uma transexual, e uma travesti – e descobriu que o Zero se tornou referência como ponto de prostituição no Brasil.

Das cinco entrevistadas, três não são de Mato Grosso e todas, por unanimidade, afirmaram que preferem trabalhar no Zero, porque consideram um local seguro para a profissão.

B.G., de 25 anos, começou a se prostituir há dois anos por necessidade, visto que o mercado de trabalho estava muito difícil. A morena de olhos castanhos e sorriso bonito, que antes era vigilante na Arena Pantanal, é natural de Campo Grande (MS).

Ela contou que atende entre oito e 15 clientes por dia e que cada programa custa em média R$ 120, valor tabelado para cerca de 30 mulheres que trabalham na boate em uma das esquinas no local e pagam R$ 10 por programa ao dono do bar.

Ela escolheu trabalhar na boate por segurança e afirmou que as mulheres que ficam nas ruas do Zero, são pessoas que já trabalham com isso há mais de 10 anos.

A família não sabe da profissão, ou, como ela mesma afirmou, até sabem, mas fingem que não. Com o dinheiro que ganha, ela consegue manter a mãe, dois irmãos e seus três filhos. Inclusive paga a faculdade do irmão, que está preste a se formar em odontologia na Unic, um dos cursos mais caros da faculdade.

“Isso aqui não é vida para ninguém. Quem pensa em vim para cá, não venha. Porque se existe um inferno, o inferno é aqui”

“Eu tenho três filhos, é complicado. Salário mínimo você não consegue sustentar uma família com uma mãe, dois irmãos, três crianças e aluguel da casa”, disse.

Apesar das conquistas que a prostituição lhe rendeu, como a casa e o carro da mãe, a jovem deixou claro que não gosta da vida que leva.

“Isso aqui não é vida para ninguém. Quem pensa em vim para cá, não venha. Porque se existe um inferno, o inferno é aqui”, disse B.G., que afirmou ter a certeza que abandonará a prostituição.

Ao contrário dela, a travesti Pandora*, de 28 anos, disse não se imaginar fazendo outra coisa. A cuiabana começou a se prostituir quando tinha entre 13 e 14 anos, assim que assumiu para a família que era travesti.

Desde o início Pandora trabalhou no Zero, porém também teve oportunidade de ir para São Paulo, Curitiba, Rondonópolis e para fora do Brasil. E ainda assim sempre volta para o famoso quarteirão da prostituição de Várzea Grande.

“Eu vejo minhas amigas falando como está lá para fora, as bichas morrendo por qualquer coisa, porque no nosso meio é muita disputa. Aqui ainda tem mais segurança, é mais tranquilo, a gente trabalha tranquila. Polícia vê e nem eles intrometem com a gente, não chega como eles chegam com os homens ‘mão pra cima, que não sei que’. Não, chegam com a maior educação”, disse.

Quando Pandora se descobriu travesti e começou a se prostituir, a família não apoiou e teve medo, acreditou que tudo não passava de uma brincadeira.

“Mas quando eles veem que a gente está modificando o corpo acreditam que é sério. Ai vê que a gente quer, mas que não é tudo isso que o povo fala. Que é perigoso, mas não é tudo isso de perigo”, explicou.

Ednilson Aguiar/O Livre

Trevo do Zero Quilômetro

Trevo do Zero Quilômetro

Atualmente ela ajuda a família, já tem uma casa e já transformou todo corpo, com próteses nos seios e nos glúteos.

Ela não soube dizer uma média de quantos programas faz por dia e nem os valores, afirmou que tudo depende do dia e do cliente, mas que hoje está muito mais difícil do que antigamente, quando chegou a receber até R$ 10 mil por um programa.

“R$ 10 mil por um dia e uma noite. Mas ainda tem aqueles que pagam R$ 2 mil, R$3 mil. Mas esse de R$ 10 mil está difícil agora, foi só uma vez”, contou aos risos.

Pandora estudou somente até a oitava série, época em que passou a se vestir como mulher e saiu de casa. Ela acredita que as travestis correm para a prostituição por causa da rejeição da família. Hoje ela se vê como mulher e contou que inclusive sua família já a trata como “ela” e que essa é a vida com que sonhou.

Apesar de amar a profissão, ela relatou que algumas vezes sentiu medo. Em uma delas, quando ainda era menor de idade, a travesti brigou com cinco homens e foi parar na delegacia. Teve medo de dizer que era menor e só foi solta quando a tia chegou brigando com os policiais por terem a colocado na cela mesmo sem ter idade.

A agressão de Pandora acabou razoavelmente bem, mas Lívia, de 23 anos, teve uma experiência ainda mais forte. Induzida pelas amigas a se tornar prostituta, a jovem foi estuprada quando tinha um mês da profissão.

“Me chamaram para fazer um programa e ao invés de me levar para um motel, me levaram para o meio do mato. Foram dois homens, um me chamou e me levou até o outro”, contou.

À época ela parou de trabalhar por quatro meses e mais tarde voltou. Os estupradores, que eram do exército brasileiro, foram expulsos por causa da denúncia dela, presos e um deles foi assassinado por causa do crime dois meses depois.

“Me chamaram para fazer um programa e ao invés de me levar para um motel, me levaram para o meio do mato. Foram dois homens, um me chamou e me levou até o outro”

“Eu falei para minha família que aconteceu outra coisa, porque meu pai, meu ex-marido e meu irmão são da Rotam. Ai meu irmão não aguentou, foi lá e matou ele”, contou a jovem.

O irmão não foi condenado pela morte, como ela mesmo disse “ele é polícia”.

Em Cuiabá ela disse nunca ter sentido medo. Ela já trabalha como prostituta há um ano e seis meses. Começou após separar do marido e não ter como continuar pagando a faculdade de administração.

As amigas, que eram prostitutas às escondidas em Manaus (AM), sua cidade natal, a chamaram para fazer programa através de um site e ela foi. Um ano depois outras duas amigas, que já conheciam o Zero, a chamaram para vir para cá.

Nos sites a loira, de olhos castanhos claros e maquiagem forte, ganhava R$ 250 por programa. Na boate ganha entre R$ 120 e R$ 80. No dia da entrevista, uma quinta-feira, por volta das 17h, já tinha feito três programas.

Para vir para Mato Grosso ela trancou a faculdade, que era o motivo inicial de ter começado a se prostituir, e deixou os quatro filhos, dois casais de gêmeos, com o ex-marido.

Quando o ex-cônjuge descobriu a nova profissão de Lívia ficou furioso, “veio com tudo para cima de mim”, disse a jovem. Ele descobriu quando ela ainda trabalhava no site, em Manaus. O restante da família nunca soube a verdade.

Ela contou que apesar de não ser uma vida muito boa, ela gosta pelo dinheiro. Nas ruas tira em média R$ 5 mil por mês, no site a renda ficava entre R$ 7 mil e R$ 8 mil. Com o dinheiro ela ajuda a manter os filhos, comprou uma moto e um carro.

No final de outubro, Lívia voltará para Manaus, onde pretende retomar os estudos. Porém até se formar continuará sendo prostituta.

Já Paula, de 31 anos, começou a se prostituir há um ano porque estava passando por momentos difíceis. Ela havia sido roubada e conheceu uma travesti que morava no Acre, assim como ela, mas fazia programa no Zero, que passou o endereço do local.

“Eu falei para ela que estava passando por um momento difícil, que tinham roubado minha moto, que eu não conseguia mais viver andando de ônibus, ai ela falou que a única opção era essa, que conseguia rápido. Ai eu vim e consegui mesmo”, lembrou.

“Se trabalhar direitinho dá para tirar uns R$ 10 mil por mês. Eu procuro trabalhar com meta, fazer sempre R$ 300 / R$ 350 por dia”

Na primeira vez que veio para Mato Grosso ficou 20 dias e ganhou R$ 7 mil. Ao ver que dava realmente para conseguir dinheiro rápido, ela voltou.

“Se trabalhar direitinho dá para tirar uns R$ 10 mil por mês. Eu procuro trabalhar com meta, fazer sempre R$ 300 / R$ 350 por dia. Às vezes faço mais, R$ 500/600, já chegou dia de eu fazer R$ 1000 por dia, R$ 800. Ai dá uma avançada na minha meta”, explicou.

Ela nunca trabalhou como prostituta em outro lugar, soube do Zero, gostou no lugar e ficou. Hoje faz entre cinco e oito programas por dia, mas a família não sabe da profissão. Paula tem dois filhos, um que trouxe para Cuiabá e o outro que ficou no Acre com a família.

Logo que começou, a prostituta teve um episódio de violência, um homem a pegou para um programa e a bateu. “Ele estava drogado, surtou de uma hora para a outra, com muita droga, e me agrediu”, lembrou.

A acriana não denunciou o agressor, apenas saiu do local e fugiu. Ela contou que no dia ficou com medo, foi embora e dormiu pensando em desistir, mas no outro dia voltou para cumprir sua meta.

Paula pretende se prostituir somente até o final de 2017, depois quer voltar a trabalhar com outras profissões, como a última antes da prostituição, fiscal de caixa de supermercado.

Ela contou que conseguiu organizar sua vida como garota de programa, terminou de construir sua casa, comprou uma moto e agora irá fazer duas cirurgias plásticas, uma lipoaspiração e a implantação de silicone.

Ainda assim, a mulher garantiu que não indicaria a vida para ninguém, “é uma vida de risco, então eu não aconselho ninguém entrar. A pessoa está correndo risco de pegar doença, ou alguém agressivo”, explicou.

Nos programas Paula mantém alguns limites, não dá beijos na boca, só pratica sexo oral com preservativo e não deixa que façam nela. “É um sexo meio artificial. Só louco mesmo para pagar, porque não é uma coisa que deixa a pessoa satisfeita de verdade”, afirmou.

Paula é a única das cinco que tem uma pessoa especial, ela não o considera um namorado, mas disse que fica com ele, que o acha interessante e que o rapaz sabe da sua profissão.

Ednilson Aguiar/O Livre

Naila Paiva

A transexual Naila Paiva, que trabalha como prostituta no Zero

A transexual Naila Paiva, de 28 anos, inclusive defende que não se deve envolver com homens. Ela acredita que os homens só veem as transexuais e as travestis como um fetiche.

“Só trabalhem muito, guardem dinheiro e cuidem da saúde. Não se envolvam porque homem não valoriza nem mulher, imagine travesti, ou transexual”, disse.

Ela, que começou a se prostituir aos 14 anos, fez a cirurgia de mudança de sexo em São Paulo há seis meses. Naila acredita que a maioria das travestis e transexuais procuram a prostituição porque é muito caro se transformar.

“Tem que fazer plástica, e a maioria é pobre, não tem condições, então é por isso que eu creio que a maioria vai pro mundo da prostituição, por necessidade”, afirmou.

Naila é do interior de Mato Grosso, começou na profissão após a família expulsá-la de casa aos 14 anos por não aceitar sua transexualidade. “Ai eu vim me prostituir ne, não tinha outra opção”, disse.

Atualmente a família aceita, mas quando foi expulsa ela veio para Cuiabá sozinha e só contou com a ajuda de travestis e transexuais cuiabanas.

Apesar do perigo, Naila não se vê em outra profissão, pelo menos não hoje. Com a cabeça voltada para o planejamento do seu futuro, ela pensa em até os 35 anos já ter conseguido parar de se prostituir.

“A gente tem que investir nosso dinheiro em imóveis. Porque a gente não tem profissão, não tem nada. Ou imóveis, ou montar alguma coisa, uma empresa. A maioria das travestis compram casas e depois vivem do aluguel”, disse.

Ela contou que já está construindo algumas coisas e que com o dinheiro da prostituição se transformou – com plásticas no nariz, silicone nos seios e no bumbum – na mulher que é hoje.

Parou de estudar assim que sua transexualidade aflorou. Ela queria se vestir de mulher, a família não aceitou e ela nunca mais voltou para a escola. Hoje, com 28 anos, ela acredita que não dá mais tempo, mas afirmou que tinha muita vontade de estudar.

Ela viajou todo Brasil e atualmente vive entre a Europa e Cuiabá, porém foi taxativa quando perguntada sobre seu lugar favorito para trabalhar: “Aqui, aqui é muito bom para travesti, Cuiabá é muito mais tranquilo, os outros lugares são muito violentos”.

Naila sonha com a legalização da prostituição e com o fim do preconceito contra as travestis e as transexuais.

Ednilson Aguiar/O Livre

Naila Paiva

“A gente paga um preço muito alto, porque as pessoas sempre vão ver uma travesti e tirar como piada, ficar dando risada”, Naila Paiva

“A gente paga um preço muito alto, porque as pessoas sempre vão ver uma travesti e tirar como piada, ficar dando risada. Por isso que a maioria ficam doidas, brigam, quebram tudo. Às vezes eu acho que a gente é um pouco revoltada por causa da sociedade também. Os homens principalmente, a gente passa e ficam dando risada”, relatou.

A transexual contou que em Cuiabá o preconceito é menor, mas em São Paulo, quando estava trabalhando, pessoas passavam e jogavam pedra, xingavam, tacavam ovo e famílias mandavam crianças xingar.

“É difícil. Na sociedade o povo ri, grita, dá uma raiva. Pra que gritar? Isso tinha que mudar, eles tinham que aceitar. Eles acham que não é normal, mas não é porque a gente quer. Eu operei mesmo mais para afrontar a sociedade, que ficava me chamando de homem. Óbvio, fiz para mim, mas o povo é muito preconceituoso, acha que a gente tem que virar homem”, desabafou.

Atualmente ela faz em média cinco programas por dia e não trabalha durante a noite. Quanto às críticas que algumas pessoas fazem às travestis e ao Zero, ela rebateu: “O Zero é muito tranquilo para as travestis, porque as travestis são unidas, não roubam e quando aprontam é porque é alguma de fora que vem, mas a gente não deixa ficar”, afirmou.

*Com exceção a Naila Paiva, todos os nomes são fictícios e escolhidos pelas personagens.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros




Como você se sentiu com essa matéria?
Indignado
0
Indignado
Indiferente
0
Indiferente
Feliz
1
Feliz
Surpreso
0
Surpreso
Triste
0
Triste
Inspirado
0
Inspirado

Principais Manchetes