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Realidades do sistema educacional brasileiro (Parte II)

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Realidades do sistema educacional brasileiro (Parte II)
Jesuítas no Brasil: sua expulsão pelo Marquês de Pombal, em 1759, foi um prenúncio da tragédia educacional brasileira

*Publicado originalmente no Instituto Realitas.

As dificuldades na formação educacional do povo brasileiro são imensas, como anotamos em artigo anterior (Realidades do Sistema Educacional Brasileiro, parte I).

Tais dificuldades tem raízes históricas profundas. Repousam no fracasso relativo das ações educacionais jesuíticas, no período colonial.

Os esforços jesuíticos tiveram algum sucesso entre os indígenas, mas um efeito menor nos setores dirigentes da sociedade.

Atuaram os jesuítas durante 210 anos. Mas sempre sofreram oposição sólida e violenta, por diversos setores do mundo colonial.

Como a eles se opunham, opunham-se também aos esforços inacianos no sentido de implantar, na sociedade, o respeito à moral e à ética do estudo e do trabalho.

Essas dificuldades foram seguidas pela tragédia absoluta na área, que se seguiu à expulsão dos jesuítas, em 1759.

A hostilidade ao tema do estudo, na sociedade colonial, gerou uma identidade social hostil à própria noção de estudo sistemático. Que implica na introjeção de uma moral específica.

A expulsão da Companhia de Jesus consolidou tal perspectiva.

Os modelos produtivos brasileiros nunca conseguiram se distanciar dessas deficiências formativas, estruturais, que modelaram o perfil da sociedade. Bem como das atitudes mentais existentes diante do conhecimento.

Tais deficiências acabaram determinando um traço cultural próprio, que foi herdado e desenvolvido por gerações de brasileiros no período posterior à Independência.

Com a Independência, como já observamos (A Constituinte de 1823 e as Universidades), entendeu-se que pelo menos os quadros governantes deveriam ter alguma formação essencial na área de Direito. Isto os capacitaria ao bom exercício das funções públicas.

Também se considerou necessária a existência de alguns engenheiros, responsáveis por obras e projetos mais ambiciosos.

Se entendeu igualmente que o país deveria ter médicos, pelo menos para atender aqueles que administravam a sociedade e formular, talvez, projetos mais amplos de saúde pública.

No entanto, não pareceu que fosse necessária uma Universidade para isso, bastando apenas a instalação de alguns cursos ou faculdades.

Tais faculdades, que não tinham a complexidade acadêmica de cursos universitários, não deixavam de sofrer com os problemas decorrentes da gigantesca e contínua experiência do analfabetismo fundador e militante, mas conseguiram formar quadros razoavelmente eficientes.

O problema era que tal formação era limitada socialmente, e não havia base para a generalização da experiência. Donde a afirmação do deputado Costa Barros, em 1823: “se faltavam mestres de primeiras letras, como estabelecer cursos superiores”?

Assim, a criação das universidades em 1823 pareceu um plano mirabolante, pois, como haver universidades dignas de tal nome se não há alunos em número suficiente para elas? E se não havia, no país, cultura educacional ou científica suficiente?

Em 1827, portanto, o Imperador D.Pedro I, que não acompanhou os delírios constituintes sobre as universidades, assinou a lei de 15 de outubro, sobre o ensino fundamental, na qual, em seu artigo 6º, determinava que:

“Os Professores ensinarão a ler, escrever as quatro operações de aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria prática, a gramática da língua nacional, e os princípios de moral cristã e da doutrina da Religião Católica e Apostólica Romana, proporcionados à compreensão dos meninos; preferindo para as leituras a Constituição do Império e a Historia do Brasil”.

Tal abordagem do assunto parecia estar voltada a resolver o problema essencial da sociedade, sua frágil base educacional e, igualmente, moral.

A proposta de que as escolas deveriam alfabetizar estava integrada à ideia de que elas deveriam também formar pessoas moral e civicamente. E que tais movimentos deveriam estar coligados com a construção de uma identidade nacional.

A alfabetização tinha a ver com a formação moral e cidadã. Como aprender se não se sabia como estudar e não se tinha um porquê? O que representava uma tentativa de suplantar uma carência clara desde a expulsão dos jesuítas.

Mas não estava associada com a formação profissional superior.

Era o ensino secundário, por exemplo o Colégio Pedro II, criado em 1837, que deveria preparar quadros para o ensino superior da época.

A perspectiva era realista. Não se acreditava que poderia existir uma conexão entre dois grupos.

De um lado, uma sociedade claramente hostil ao estudo, que deveria não só a aprender a ler, mas também a estudar, a se portar moralmente.

De outro lado aqueles que, já integrantes de reduzidos círculos sociais letrados, poderiam, eventualmente, ingressar nos cursos formativos superiores.

De fato, tentava-se preservar um grupo dirigente da influência dos problemas formativos e morais da sociedade.

Buscava-se uma dissociação educacional que resgatasse pelo menos uma parte dos setores responsáveis daquele ambiente geral de desqualificação moral e educacional.

Tal proposta sobreviveu até a era das quantificações políticas.

Esta passou a considerar os números mais importantes que as qualidades. E as razões que presidiam tal separação foram consideradas hostis à era dos votos universais.

Educadores preocupados, nos anos 30, acreditaram que essa divisão não fazia sentido.

Sustentaram que, à maneira pombalina (ver aqui), todos poderiam alcançar a plenitude da consciência política, no caso, a Universidade. As falhas morais que atrapalhavam os estudos poderiam ser facilmente superadas pela igualdade geral.

Não parece que tenhamos um texto mais exemplar das ilusões que se abateram sobre os educadores, neste aspecto, que o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” de 1932.

Tal movimento, que lançou as bases do sistema educacional atual, preferiu ignorar os problemas de fundo, morais, formativos, da sociedade brasileira, e optou por acreditar que era possível a unificação dos dois sistemas, num só.

Assim, afirmaram os autores do Manifesto:

“o divórcio entre as entidades que mantêm o ensino primário e profissional e as que mantêm o ensino secundário e superior, vai concorrendo ‘para que se estabeleçam no Brasil, dois sistemas escolares paralelos, fechados em compartimentos estanques e incomunicáveis, diferentes nos seus objetivos culturais e sociais, e, por isso mesmo, instrumentos de estratificação social’”.

Ou seja, entenderam, corretamente, que existiam no Brasil dois sistemas educacionais. Um que visava a formação cívica e a alfabetização da sociedade, e outro que se destinava à formação de quadros gerenciais ou com qualificação superior.

No entanto, a sua proposta para resolver esse problema era arriscada:

“A escola primária que se estende sobre as instituições das escolas maternais e dos jardins de infância e constitui o problema fundamental das democracias, deve, pois, articular-se rigorosamente com a educação secundária unificada, que lhe sucede, em terceiro plano, para abrir acesso às escolas ou institutos superiores de especialização profissional ou de altos estudos”.

Isto é, os “pioneiros da educação nova” propunham que os dois sistemas deveriam ser interligados, e que o objetivo último da formação básica deveria ser a formação universitária profissional.

Transformava-se o ensino médio em mediador entre os dois níveis educacionais e unificava-se os dois universos sociais.

O risco era evidente.

Não apenas porque continuava não existindo escolas e professores, mas porque a sociedade, como observamos, seguia apresentando dificuldades estruturais para a aceitação dos procedimentos morais e éticos que facilitassem o processo de estudo e o conhecimento.

As dificuldades de aprendizado decorriam de dificuldades morais. Estudar exigiria renúncia e aceitação de regras superiores à individualidade.

Como a escola seria laica e universal, abdicava-se do ensino moral e religioso e entendia-se que apenas o conhecimento das letras e dos números era suficiente para transformar aquela terrível realidade basal.

Não se considerava o problema de que a fragilidade moral da sociedade era uma das causas da fragilidade cultural do estudo.

Além do mais, partia-se do princípio de que o ensino secundário deveria atuar como uma espécie de elemento sintetizador, unificado, “para se evitar o divórcio entre os trabalhadores manuais e intelectuais”.

Ou seja, acreditava-se que a sociedade queria ou necessitava da associação entre essas duas dimensões, a manual e a intelectual, e de que todos os agentes sociais desejavam a formação universitária ou superior.

Ora, como demonstra os números tratados em outra oportunidade, é evidente que o sistema proposto colapsou com o tempo, de forma absoluta.

O problema não estava numa solução pedagógica, mas no entrave moral ao reconhecimento de uma plena cultura de estudo.

E mais: o movimento histórico, de hostilidade ao estudo, longe de ser superado, simplesmente contaminou o ensino médio e entrou no sistema universitário nascente.

Cem anos durou o projeto de D. Pedro I. Marchando para cem anda o projeto da “educação nova”.

Parece claro que existe a necessidade de uma profunda reforma ou superação do modelo dos “pioneiros da escola nova”.

E da adoção de um projeto realista, que coloque o Brasil diante de sua realidade estrutural. O tema da solução moral, ao que tudo indica, continua vivo e presente.

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* EDGARD LEITE é vice-presidente da Academia Brasileira de Filosofia, diretor do Instituto Realitas, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor extraordinário do Programa de Doutorado em Estudos Globais da Universidade Aberta, Portugal.

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