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Realidades do sistema educacional brasileiro (Parte I)

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Realidades do sistema educacional brasileiro (Parte I)

*Publicado originalmente no Instituto Realitas.

Ler, escrever, entender matemática, são atividades difíceis, que exigem estudo por muitos anos.

O sistema educacional, que administra tal processo, deve ser adequado às necessidades da Nação, ao seu projeto de desenvolvimento e crescimento. Ele tem que dar conta de todas as ações formativas necessárias para fortalecer diferentes vocações e realidades profissionais.

E deve faze-lo de forma aplicada, respondendo às necessidades da sociedade e ao seu projeto. Só assim o ato de estudar faz sentido para quem estuda. E para quem leciona.

O principal objetivo de um sistema educacional funcional é formar pessoas para desempenhar diferentes papéis, profissionais, dentro da sociedade. E, dessa maneira, contribuir para a realização existencial de todos.

Sociedades eminentemente agrárias ou sem necessidade de qualificação de mão de obra, tendem a ser mais moderadas nos caminhos do estudo.

Sociedades complexas, diversificadas, industriais ou pós-industriais, costumam ter sistemas educacionais mais intrincados e ambiciosos, capazes de permitir maior especialização dos estudos e campos profissionais.

No Brasil, esse papel do sistema educacional nem sempre foi percebido com clareza.

As atividades rurais dominantes (pelo menos até o princípio do século XX) exigiam pouca qualificação profissional e o estudo geral, portanto, era tido como mais ou menos dispensável.

Apenas a partir dos anos 30 passou a existir uma política educacional nacional clara e de maior complexidade. Essencialmente porque a industrialização tornou-se objetivo maior da Nação.

Os índices do analfabetismo, no Brasil, de fato, caíram continuamente: de 56%, no auge do regime de Vargas, para 9,6% em 2010.

Mas existem problemas no Brasil ainda não totalmente resolvidos, que emergem das ambiguidades do projeto de desenvolvimento nacional existente.

Pois, ao longo do tempo, perdeu-se a clareza de que tipo de país se pretendia construir. E, portanto, qual o objetivo formativo do sistema educacional.

Pretende-se construir um país industrializado? Competitivo com outros países industrializados? Deve voltar-se o sistema educacional para formar quadros aptos a promover essa realidade?

A ser assim, os problemas nessa direção se tornaram evidentes. E perdeu-se a clareza original.

Os índices de analfabetismo, por exemplo, ainda não alcançaram um patamar satisfatório, considerando os padrões internacionais.

Segundo o Relatório de Monitoramento Global de EPT da UNESCO, 2014, o Brasil está, em números reais, entre os dez países do mundo que respondem por 72% do analfabetismo mundial.  O Brasil está na oitava posição. É precedido, pela ordem, por Índia, China, Paquistão, Bangladesh, Nigéria, Etiópia e Egito. E seguido por Indonésia e República Democrática do Congo.

Isto é, considerando sua população, o número de analfabetos no Brasil é grande. Mesmo aceitando-se os ganhos proporcionais dos últimos 70 anos.

Deve-se considerar, para uma boa análise do problema, também o percentual de analfabetos funcionais. Ou seja, pessoas incapazes de ler ou entender algo além de sentenças curtas e números.

Pelo PNAD 2009 do IBGE a taxa de analfabetismo funcional era de 17% da população.

Somando-se o analfabetismo funcional ao analfabetismo regular, percebemos que quase 30% da população brasileira é incapaz de apreender algo através da escrita.

Isso estabelece uma base de fragilidade, a partir da qual podemos supor níveis baixos de capacidade de compreensão de leitura, em níveis superiores de escolaridade. Pois entre analfabetos funcionais e indivíduos plenamente letrados existem muitas faixas de alfabetização precária.

Assim, em que pese tantas décadas de esforço, o Brasil possui problemas graves no seu sistema educacional e formativo, decorrentes de problemas na capacidade de compreensão de textos escritos.

E, evidentemente, no entendimento de Matemática.

Se tomarmos em consideração a qualidade do ensino de Matemática e Ciências, entre esses dez países com maior número de analfabetos no mundo, podemos compreender melhor nossas limitações e entraves na área.

No Global Information Technology Report 2014, do Forum Econômico Mundial  (p.287), a qualidade de ensino de Matemática e Ciências, entre os países com maior população de analfabetos, é assim classificada:

  • Índia. Posição no ranking global: 32
  • Indonésia. Posição no ranking global: 35
  • China. Posição no ranking global: 48
  • Paquistão. Posição no ranking global: 104
  • Etiópia. Posição no ranking global: 109
  • Bangladesh. Posição no ranking global: 112
  • Nigéria. Posição no ranking global: 117
  • Brasil. Posição no ranking global: 138
  • Egito. Posição no ranking global: 145
  • República Democrática do Congo. n/c

O Brasil possui um significativo contingente de analfabetos e de analfabetos funcionais. Mas, além disso, entre os que estudam e são alfabetizados, o Brasil têm um dos piores ensinos de matemática do mundo.

Tal realidade atesta a limitação da qualidade do ensino técnico profissionalizante e superior. Compromete, principalmente, a qualidade dos quadros gestores.

Não apenas por conta da necessidade de um pensamento lógico e racional na área de gerenciamento, mas igualmente pelas necessidades de uma era de intenso desenvolvimento tecnológico.

Observemos que a Índia, por exemplo, apesar de ter a maior população de analfabetos do mundo, tem uma qualidade de ensino de Matemática e Ciências razoável (na frente do Japão, por exemplo, que está na posição 34).

Na Índia, uma elite letrada convive, há milênios, de forma autônoma, com uma população analfabeta.

O nível de formação de seus quadros dirigentes e gestores alfabetizados é, portanto, bem superior ao nível educacional da sociedade que administram. E não é afetado pelo analfabetismo dominante.

Isto permite à Índia ter um setor tecnológico e uma Universidade de grande qualidade. Bem como uma liderança gerencial eficaz.

O Brasil, ao contrário, faz parte de um grupo crítico, junto com Paquistão, Etiópia, Bangladesh, Nigéria e Egito, no qual analfabetos e analfabetos funcionais convivem ou são dirigidos por letrados de baixa qualificação, com formação sofrível em matemática.

Consideramos, em outra oportunidade, as fragilidades morais da sociedade brasileira, ou seja, a dificuldade social em  aceitar  padrões gerais de conduta que devam ser observados em prol do bem comum.

A inserção do Brasil nesse “grupo dos dez”, em termos educacionais, acrescenta um dado perturbador à essa realidade moral.

Além de uma forte tendência à hipertrofia do privado e dos interesses particulares, existe igualmente, no Brasil, uma dificuldade técnica ou intelectual de condução dos projetos, tanto privados quanto públicos. Também por conta de deficiências de formação.

O que significa que a sociedade é mal gerida, mal conduzida, em termos de planejamento. O ensino dos alfabetizados é afetado pelo analfabetismo de base, a preocupação com o sucesso gerencial,  pelo imoralismo, ou amoralismo, reinante.

O Brasil não pode, por exemplo, igualar-se à Índia.

Alguns pensadores do sistema educacional brasileiro tendem a achar, no entanto, que podemos acompanhar sistemas externos, desconsiderando o peso dessa realidade de fundo.

Como tratamos em outro texto, “Os constituintes de 1823 e as Universidades”, no princípio do século XIX pensava-se em Universidades, mas, como ponderou, então, o deputado Costa Barros:

“Não temos nós ainda um bom colégio, não sei como nos metemos já a ter universidades, logo de pancada!” e “se faltavam mestres de primeiras letras, como estabelecer cursos superiores?”.

Isto é, se o analfabetismo é dominante, como estruturar um sistema universitário de excelência?

Aqui, ao contrário da Índia, a pressão do analfabetismo influencia o desenvolvimento dos níveis escolares superiores, pois as trocas culturais entre setores sociais são contínuas e históricas. A Índia é uma sociedade de castas.

No Brasil, mesmo os professores trazem junto consigo o eco das realidades dos meios sociais de onde emergiram.

O projeto de industrialização do Brasil, portanto, esbarrou nesses entraves e limitações. Pois tanto do ponto de vista prático, quanto teórico, a formação profissional no Brasil apresenta expressivas disfuncionalidades.

O sistema educacional de um país não pode existir apenas no campo do ideal, mas também deve ter em mente as potencialidades e realidades da sociedade.

As metas grandiosas da educação formativa, para uma sociedade industrial, próprias da era Vargas, parecem, portanto, não terem sido alcançadas.

E, provavelmente, colapsaram.

Não há Nação bem sucedida sem um sistema educacional dotado de funcionalidade. Isto é, adequado à sua realidade.

Mas, para isso, precisaríamos ter um projeto de crescimento e desenvolvimento nacional que, a partir do que somos, fornecesse sentido ao que ensinamos e estudamos. E ao que pretendemos fazer, em nossas vidas, com nossos estudos.

(continua)

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* EDGARD LEITE é vice-presidente da Academia Brasileira de Filosofia, diretor do Instituto Realitas, professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professor extraordinário do Programa de Doutorado em Estudos Globais da Universidade Aberta, Portugal.

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