1É muito comum em discussões com intelectuais de esquerda ouvir, entre as críticas a Jair Bolsonaro, a ideia de que o bolsonarismo não representa ideologicamente nem mesmo um pensamento conservador. Bolsonaro é “muito grosseiro, sem preparo intelectual”, dizem. “Vai surgir uma direita no Brasil defendida por pessoas preparadas”.
2Esse argumento sugere, pelo menos, duas características do mundo das ideias no que se refere ao posicionamento político de direita. Primeiro, que uma representação política para ser reconhecida deve ter uma origem intelectualmente considerada nobre em termos da sua posição social. E segundo, que existiria uma maneira de se expressar politicamente.
3É difícil rastrear as origens sociais de uma ideia, qualquer que ela seja. Mas, o fato de Jair Bolsonaro defender ideias de um pensamento conservador, ideologicamente considerado de direita, não significa que ele seja o criador delas. As ideias se difundem no meio social e, muitas vezes, são apreendidas nas suas mais diferentes formas por indivíduos situados nas mais diferentes posições sociais.
4Filósofos como Edmundo Burke e Roger Scruton, por exemplo, defenderam ideias conservadores em tempos bem diferentes. Burke foi um filósofo irlandês do final do século XVII e, Scruton, um filósofo inglês que morreu em janeiro de 2020. Quase duzentos anos de vida das ideias conservadoras separam esses dois homens. As ideias sobrevivem a seus defensores e criadores.
5Pode-se dizer que, depois de criadas, as ideias passam a ter vida próprias e passam por um processo de reelaboração a partir dos interesses e valores daqueles que as defendem. Don Marquis resumiu bem todo esse processo social de reelaboração quando disse que “uma ideia não é responsável por aqueles que acreditam nela”.
6 O processo social de reelaboração das ideias não está circunscrito a intelectuais ou ao meio acadêmico. A difusão das ideias percorre toda a escada da estratificação social que caracteriza as sociedades humanas. Entre intelectuais ganha certa forma e entre indivíduos comuns, passa a ter outra fisionomia. Uma boa hipótese é que os interesses e valores do indivíduo que transporta uma ideia tende a dar a ela uma configuração própria.
7Alguns sindicalistas não leram Marx, mas defendem ideias muito afins ao pensamento marxista. A força do pensamento marxista pode variar de sociedade, de status socioeconômico, de classe social, mas tem sobrevivido ao filósofo alemão que viveu entre 1818 e 1883. Por que então Jair Bolsonaro não poderia ser um defensor das ideias de Burke e Scruton? Por que não as expressa de uma forma filosófica?
8 A forma de expressão de uma ideia nos leva à segunda característica social da vida delas. Embora no mundo intelectual as ideias sejam reivindicadas como tendo autoria e exista um zelo pela fidedignidade de seus diferentes re-elaboradores, no mundo político esse zelo parece ter outra conformação.
O candidato a deputado federal pelo Paraná Linguiça do Circo pertencia ao Partido Social Cristão e poderia defender ideias conservadoras sem ter ouvido falar de Burke ou Scruton enquanto o candidato a deputado estadual Anão Montanha do PSDB do Rio de Janeiro não precisava conhecer rigorosamente os intelectuais que fundamentam as ideias políticas da socialdemocracia.
9Portanto, a ideia de que Jair Bolsonaro não representa um pensamento conservador, ou uma direita política, parece ter mais relação com interesses ou visão de certa esquerda política do que com a incapacidade ou a ilegitimidade das ideias conservadoras nas mãos de um político como ele. A direita que “a esquerda quer” parece ter mais a ver com uma direita que não represente ameaça a seus interesses políticos.
Mas isso também não parece sustentável em termos práticos, pois os indivíduos podem ter interesses diferentes mesmo quando defendem ideias parecidas. E, embora sempre tenha consequências práticas, um indivíduo pode, muitas vezes, defender ideias que não se sustentam. Ideias equivocadas também sobrevivem no tempo.
Luís Benedito Canaverde é empresário e graduado em filosofia.
