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Mulheres deixam a dependência reaprendendo a viver em comunidade

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Mulheres deixam a dependência reaprendendo a viver em comunidade

Após algum tempo depois de a reportagem do LIVRE chegar em frente ao jardim cercado por um portão baixo, Renata veio ao encontro com as chaves. Junto com a proprietária Adelma Vargas, foi ela quem abriu o portão para nos receber, assim como faz diariamente com outras mulheres, e como ja fizeram com ela algum tempo atrás. Há dois anos, três meses e nove dias, Renata Souza e Silva, 38 anos, trabalha como monitora na Comunidade Bem Viver, onde também esteve em recuperação durante nove meses.

Ednilson Aguiar/Olivre

Comunidade Bem Viver

Renata Souza, ex-dependente quimica e monitora da Comunidade Bem Viver, contou ao LIVRE sua história de superação

Em casa de pai alcóolatra, no interior de São Paulo, Renata começou a beber aos 14 anos, vício que abriu para ela outras “portas”, como a do crack, droga que começou a usar com o ex-marido, aos 17. “O meu problema sempre foi o álcool”, ela conta e completa: “A maconha você ainda consegue controlar, mas o crack domina a sua vida”. Por causa do vício, só descobriu a gravidez da primeira filha com 10 meses.

Após dois anos, veio a separação e com ela a mudança para a capital, o que tornou a bebida ainda mais frequente na busca de Renata em superar a dor de deixar os filhos e assumir sua homossexualidade, contra o preconceito da família. Então veio a cocaína.

Com uma segunda separação, desta vez da companheira com quem viveu durante cinco anos, ela retornou para a cidade dos filhos, arrumou um emprego de entregadora de peças pela manhã e de pizza à noite – e o que parecia solução a afundou ainda mais nas drogas e a fez voltar ao crack. “Eu tinha que usar para trabalhar a madrugada inteira e de manhã eu bebia para aguentar o serviço”. A droga era seu energético para trabalhar e esconder as dores, era assim que conseguia manter um “equilíbrio”. “A bebida me deixava elétrica e a maconha me acalmava”, afirma.

Mas o escape lhe custou a saúde, a relação com os filhos e quase a vida, com uma tentativa de suicídio. O estopim foi o aniversário de 15 anos do caçula, quando a filha mais velha decidiu internar a mãe com seu consentimento e, após passar três meses em outra clínica, chegou em Cuiabá com 48 quilos. Mas dessa vez a mudança foi positiva e as portas certas se abriram. “Vir para Mato Grosso foi um renascimento, ficar aqui na Bem Viver me fez reaprender a viver”, afirma.

Ednilson Aguiar/Olivre

Comunidade Bem Viver

Comunidade Bem Viver, em Cuiabá: reeducação pela vivência em comunidade

Comunidade Bem Viver

“Foi aqui que eu aprendi o que é adicção e aprendi a voltar a viver, porque eu vivia para usar”. Renata afirma que reconhecer a dependência química como uma doença e ter consciência de todo o tratamento foi essencial para a recuperação. Para ela, as monitoras serem mulheres que já passaram por tratamento no local a confortou.

A Comunidade Bem Viver conta com psicólogos, terapeutas e monitoras que são ex-dependentes tratadas no local, tomam conta do espaço cotidianamente e trabalham com remuneração e carteira assinada. “Elas saem para procurar um emprego e é muito difícil a reinserção, e aqui a gente precisa de mão de obra que conheça a realidade”, afirma Adelma Vargas, diretora da clínica.

Segundo Renata, a grande diferença da Comunidade Bem Viver está na metodologia, que envolve atividades físicas e lúdicas que reeducam, como o yoga, arte-terapia e a reeducação na vivência em comunidade, em que as internas também são responsáveis pela rotina e a manutenção do espaço.

“Em outra clínica era só de desintoxicação, eu só comia, dormia e tomava medicamento. Eu tomava 10 tipos de comprimidos e, quando eu entrei aqui, já cortaram metade da minha medicação. Hoje eu não tomo nenhum remédio, pois aprendi a lidar com a dor pedindo ajuda e escutando o outro”.

Ednilson Aguiar/Olivre

Comunidade Bem Viver

Adelma Vargas, diretora administrativa da Comunidade Bem Viver: casa atende hoje 22 mulheres e tem capacidade para 30

A Comunidade Bem Viver surgiu da necessidade que a psicóloga Adelaide Vargas percebeu, trabalhando em outras comunidades com terapia familiar e dependência química, de um local que acolhesse mulheres dependentes do álcool e drogas. Em parceria com Adelma Vargas, que administra o local, enquanto Adelaide coordena a parte terapêutica, viabilizaram o espaço com recursos próprios e inauguraram em janeiro de 2013.

Hoje a casa atende 22 mulheres e tem capacidade para 30. Adelma explica que a clínica é particular, mas também realiza tratamentos subsidiados pelo poder público, na maioria das vezes consequentes da busca da própria família e Estado. “Hoje nós temos uma diversidade de público, mulheres carentes que vão ao Ministério Público e pedem pela Defensoria o pagamento pelo Estado ou pela prefeitura, e outras cujas famílias têm condições de custear e faz o tratamento particular”.

O tratamento tem duração de seis meses e as pacientes passam por atividades baseadas na metodologia no NA e o AA – e aprendem novas formas de viver. A diretora explica que o tratamento na clínica é comportamental, pois a compulsão pela droga é uma consequência e o problema não envolve somente a pessoa dependente, mas a família e o contexto social.

Ela ainda conta que recebe muitas mulheres do interior do Estado, sendo que a maioria chega à clínica dependente das drogas como consequência de relacionamentos abusivos – a problemática mais frequente entre mulheres de todas as idades e classes sociais.

Ednilson Aguiar/Olivre

Comunidade Bem Viver

Luciene Carvalho: foco deve ser “humanista”

A terapeuta e poetisa Luciene Carvalho, conhecida pelo seu trabalho com a literatura e o hip hop, atende no local e explica que a grande problemática da dependência química é o preconceito e o comportamento “higienista” do poder público e sociedade em relação ao assunto. Junto a isso, a prática de algumas clínicas em manter o paciente para aumentar o lucro também é muito frequente, segundo ela. “O paciente vira cliente”.

A artista afirma que o lugar é um dos únicos que proporciona a arte como uma ferramenta de expressão das dependentes em tratamento, essencial durante o processo de abstinência. “Eu estou na Bem Viver e em nenhum outro lugar, porque aqui existe um foco humanista intenso, sempre houve a tradição de ignorar e tratar o dependente químico como ‘noiado’ e aqui a gente observa cada detalhe e envolve desde a beleza ambiente até o respeito à dor”.

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