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Cai-Cai, o cemitério dos heróis esquecidos, completa 150 anos

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Cai-Cai, o cemitério dos heróis esquecidos, completa 150 anos

Ednilson Aguiar/O Livre

Praça Manoel Murtinho, praça do cai cai

Praça Manoel Murtinho, na avenida São Sebastião: ali, ficava o cemitério do Cai-Cai

Neste dia 8 de agosto, um segredo escondido nas ruas de Cuiabá completa 150 anos. É a data de criação do Cemitério de Nossa Senhora do Carmo, também conhecido como Cai-Cai. Um local engolido pela cidade e soterrado por uma pacata pracinha na Avenida São Sebastião, no caminho para a Arena Pantanal.

Criado em 1867 pelo então presidente da província na época do Brasil Império, José Vieira Couto de Magalhães, esse campo santo foi aberto para abrigar personagens ilustres da história do Brasil, os heróis da Guerra do Paraguai (1864-1870).

No entanto, a única memória que restou dessas pessoas é uma placa coberta por cal e protegida por um pé de bocaiuva que sombreia uma laje de pedras. Ainda é possível ler os dizeres: Aos Heróis da Retomada de Corumbá.

Os três canhões fixados acima da placa foram arrancados e levados há mais de duas décadas da praça. Os vizinhos acreditam que um deles tenha sido roubado e outros dois removidos para o antigo Arsenal de Guerra, hoje conhecido como Sesc Arsenal.

É possível que esses três artefatos façam parte dos seis canhões que foram trazidos por Couto Magalhães como prova da batalha vencida em 1867 contra os paraguaios.

Juliana Arini

Placa na praça Manoel Murtinho, do cemitério do Cai-Cai, homenageia os heróis da Guerra do Paraguai

Placa que homenageia os heróis da Guerra do Paraguai está coberta por cal

A origem das lendas

Dona Cristina Nascimento Silva, de 87 anos, é a moradora mais antiga da região, vive ali desde 1960. A única placa que dá nome à praça Manoel Murtinho está fixada na casa dela, construída com adobe, onde vive com filhos e netos.

“Tinha um muro muito grosso e algumas sepulturas eram bem cuidadas. Lembro de um anjo da guarda bonito que ficava em cima de uma delas, bem próximo à igrejinha de taipa. Era bem ali, onde é hoje a rua (a avenida São Sebastião). O cemitério era grande e ia até lá embaixo”, recorda-se.

Ednilson Aguiar/O Livre

Praça Manoel Murtinho, praça do cai cai

Dona Cristina, uma das poucas moradoras da região que conheceu o cemitério

Naquela época, o lugar já carregava lendas. “Muitas pessoas tinham medo de me visitar, pois diziam que esse local era mal assombrado por conta dos mortos da bexiga”, conta a aposentada.

Uma epidemia mortífera

Bexiga ou bexiguinha é o nome popular da varíola, uma doença infectocontagiosa, transmitida pelo ar. Erradicada apenas em 1980, a varíola assolou Cuiabá durante a Guerra do Paraguai e quase dizimou a cidade.

A historiadora Marlene Menezes Vilela, pesquisadora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), acredita que até um terço da população tenha sido sepultada no Cemitério do Cai-Cai, entre agosto e dezembro de 1867, por conta da doença trazida pelos soldados que retornaram da única grande guerra brasileira.

“Alguns textos de época falam que 50% da cidade morreu com varíola, mas minhas pesquisas nos arquivos da Santa Casa de Misericórdia, dos Hospitais Militares e no Arquivo Público apontam que a varíola vitimou umas três mil pessoas, algo como 30% dos 12 mil habitantes da cidade sucumbiram pela doença e foram sepultados no Cemitério do Carmo”, diz.

Juliana Arini

Manual para tratamento de varíola em Cuiabá

Manual da época da epidemia de varíola em Cuiabá sobre o tratamento da doença

Foi por conta da epidemia que os heróis da Guerra do Paraguai acabaram enterrados no Cai-Cai.

Segundo os relatos do próprio Couto de Magalhães, durante a Retomada de Corumbá, em 13 de junho de 1867, muitos dos combatentes se contaminaram com a varíola. Ao retornarem a Cuiabá, a doença alastrou-se pela região e fez com que o presidente da província tivesse que decretar uma quarentena de meses.

Combatentes de todas as patentes foram sepultados no Cai-Cai. Documentos levantados pela historiadora Marlene Menezes junto aos arquivos da Cúria de Mato Grosso revelam que ali estavam os restos mortais de tenentes, sargentos e soldados.

VEJA A LISTA DE MILITARES E CIVIS SEPULTADOS NO CAI-CAI

Também foram levados para o Cai-Cai os corpos dos integrantes do famoso Batalhão de Voluntários da Pátria, formado por civis que se alistaram para ajudar o tenente-coronel Antônio Maria Coelho e sua tropa de mil homens que impediram que os paraguaios avançassem até Cuiabá.

Dona Cristina conta que, durante muitos anos, o cemitério foi mantido pelo Exército. “Tinha armários e muitas plaquinhas com nomes de todo mundo enterrado ali. Eles vinham e limpavam o local sempre. Um dia os homens do Exército chegaram e arrancaram tudo e deixaram o resto abandonado”.

A invasão do cemitério e o surgimento da praça

Jornais de época relevam que a região passou a ser invadida depois de 1965. Anos depois, no início da década de 70, seria aberta a avenida São Sebastião. “Eles passaram o trator para abrir a rua e apareceu um monte de ossos e até crânios com cabelos. Depois, simplesmente fizeram a praça”, diz a moradora.

Foi neste período que a capela foi demolida. Restou apenas um pequeno muro de pedra canga, feito com os destroços da igrejinha de Nossa Senhora do Carmo, e um cruzeiro, que pegou fogo ano passado.

O decreto de criação da praça é de agosto de 1973. Porém, ninguém sabe ao certo em qual gestão a avenida foi aberta ou quem foi o responsável.

YouTube video

“O que sei sobre o Cai-Cai são as lendas comuns da cidade: que a região sempre foi cercada de estórias e contos mal assombrados e que foi o local onde estavam enterradas as pessoas falecidas por conta da varíola. Porém, durante a minha gestão, ali já existia apenas uma praça”, afirma o ex-prefeito Manoel Antônio Rodrigues Palma, que governou a capital entre 1975 e 1979.

Apesar da criação da praça, a população da região não se esqueceu do cemitério. “As pessoas até hoje acendem velas em intenção das almas que ainda estão ali. Muitos acreditam que elas realizam milagres”, relata a advogada aposentada Lila Alves Ferreira.

Lila cresceu na região do Cai-Cai e por muitos anos cuidou do espaço da Igreja Nossa Senhora do Carmo que atende crianças e adolescentes em situação de risco.

“Quando eu era criança, nós íamos ali assistir à missa. A capelinha era muito pequena, não cabia nem trinta pessoas. A gente ficava em cima dos túmulos para assistir a missa. E eu queria sempre ficar em cima dos mais chiques”, conta.

Reprodução

Pintura Partida para Corumbá na Guerra do Paraguai

Quadro retrata a partida de militares e voluntários de Cuiabá para Corumbá

Esquecimento

Procurada pela reportagem, a prefeitura de Cuiabá informou que desconhece a história do Cemitério de Nossa Senhora do Carmo e que os registros sobre o destino dos restos mortais dos três mil cuiabanos sepultados naquele local pertencem às outras gestões.

O departamento do Patrimônio Histórico do Exército declarou desconhecer a história do cemitério. Os representantes do Exército Nacional e do 44º Batalhão de Infantaria Motorizado (o Batalhão Laguna) não souberam responder, até o fechamento desta reportagem, qual foi o paradeiro dos restos mortais dos heróis da Retomada de Corumbá.

Membro do Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Mato Grosso (CAU/MT), o arquiteto José Antônio Lemos dos Santos vem tentando, há alguns anos, convencer as autoridades a criar um memorial na praça.

“Seria uma forma de honrar a população e a história dos soldados que foram sepultados nesse cemitério, engolido pela cidade”, afirma. “É uma oportunidade de fazer justiça com os personagens da história e resgatar a memória da capela de Nossa Senhora do Carmo”, conclui.

Hoje, a única lembrança que resta do cemitério são as chamas das velas, acesas nas noites de segunda-feira nas ruínas da capela.

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