Gosto demais dessa estória. Ela tem a ver com a formação atual da população mato-grossense. Vou contar a estória. No começo de 1980 era editor da Revista Contato, em Cuiabá. Vale registrar a qualidade editorial requintada da revista para aquele tempo. Tinha em cada edição uma entrevista em páginas azuis de quatro páginas. Sempre um tema conceitual. Era da minha responsabilidade. Aquele era o ano do primeiro censo nacional depois da divisão que separou Mato Grosso do Sul do velho território de Mato Grosso. A separação fora em 1979.

Entrevistei o professor Nelson Pinheiro, cabelos brancos, fala mansa, nascido em Santo Antônio de Leverger e delegado do IBGE em Mato Grosso. Aqui para um pouco a narrativa para justificar o porquê da entrevista. A partir de 1973, o governo federal, à época presidido pelo General Emílio Garrastazu Médici, decidira ocupar a Amazônia, como política estratégica de segurança nacional. Desde 1975 o governo federal desenvolveu uma poderosa política cuja filosofia era “integrar para não entregar”, como parte da “Marcha para o Oeste”. Objetivo: proteger a Amazônia de interesses estrangeiros ameaçadores à região e da expansão do socialismo que já estava na Bolívia com Che Guevara e financiamentos soviéticos.

Mato Grosso recebeu fortes ondas de migração de paulistas, paranaenses, gaúchos, mineiros, nordestinos. Em 1970 sua população era de 580 mil – aqui considerando só a região Norte do Estado que ainda não era dividido. Em 1980 teríamos o primeiro censo que contaria os mato-grossenses nascidos e os migrantes que vieram na política federal ao longo da década de 1970.

Entrevistei o professor Nelson Pinheiro numa pequena e gostosa casa em Santo Antônio de Leverger. Conversa longa. Macia. Bebemos cerveja “Brahama” fabricada no Coxipó. Um dos orgulhos da velha Cuiabá. Com base na grande mistura de gentes que estava acontecendo em Mato Grosso, perguntei-lhe: que tipo de mato-grossense o senhor espera encontrar neste censo? Ele respondeu calmo, sem ter pensado a respeito: “Espero encontrar um bugre de olhos azuis”. Devolvi-lhe a pergunta: “O que será esse bugre de olhos azuis?”. Sua explicação foi a de que aqueles migrantes fatalmente já estavam se integrando à cultura regional e os seus filhos estavam se casando aqui sem olhar pra carteira de identidade. “Paixão é paixão, disse rindo”. Continuou: “os migrantes nos acusam de que os cuiabanos são lentos e sem ambição. Nós os acusamos de chegar invadindo os espaços e de terem casca grossa. Com o tempo nós cuiabanos vamos ceder, nos agitar também, mas eles baixarão um pouco a guarda e todos seremos bugres de olhos azuis”.

Na sua visão, o mato-grossense da época, amorenado, com aparência típica ao se misturar com migrantes de olhos azuis se tornaria o seu lendário “bugre de olhos azuis”. Um dado relevante: o censo de 1980 mostrou que a população chegara a 1 milhão 139 mil. Dobrara em relação ao censo de 1970. Logo, essa diferença já era na sua maior parte formada por gente que chegou e pelos seus filhos e netos que se aclimatavam por aqui.

Em 1990 ele já estava aposentado do IBGE. De novo entrevistei-o para um programa de televisão, indaguei sobre os bugres de olhos azuis. Ele me contou que seu filho, “bugre como eu”, casou-se com uma moça de Santa Catarina, cabelos ruivos, olhos verdes, descendente de italianos e de alemães. “Tenho netinhos bugres de olhos azuis”.

Passaram-se 37 anos desde aquela primeira entrevista. A população de Mato Grosso hoje alcança 3,1 milhões. A maioria absoluta seriam os “bugres de olhos azuis” da sua visionária leitura tantos anos atrás. Sabedoria! Contribuo com filhos e netos: os meus bugres de olhos azuis!

Assinatura Coluna Onofre

 

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