Nos idos das décadas de 1950 a 1970, quando a Cadeia Pública de Cuiabá ainda funcionava na Rua Joaquim Murtinho – hoje parte do centro histórico da Capital -, além de abrigar cerca de 45 presos – sendo oito deles mulheres -, o local também servia para o cultivo de rosas que eram comercializadas aos cuiabanos.

Passados quase 50 anos, o projeto “RefloreSer” promete resgatar, não apenas essa memória da cuiabania, mas a auto estima e capacidade de trabalhar em uma atividade lícita – com potencial lucrativo significativo – de 60 mulheres presas na Penitenciária Ana Maria do Couto May, localizada no bairro Pascoal Ramos, região periférica da Capital.

Inaugurado na manhã da última quarta-feira (29), o projeto vai dar utilidade a uma área de 800 metros quadrados dentro da unidade carcerária. Serão cultivadas flores de corte – destinadas a buquês – e envasadas, flores tropicais e plantas ornamentais, espécies para as quais a região da Baixada Cuiabana é propícia.

Professor do departamento de Agronomia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e responsável pela capacitação das detentas – com idade entre 25 e 60 anos – que vão participar do projeto, Rafael Campagnol, afirma que outros tipos de planta com potencial para cultivo também estão sendo selecionados.

Para isso, está sendo desenvolvido um trabalho de tecnologia para adequar as condições climáticas, com tela de sombreamento e sistema de irrigação, por exemplo, que possibilitem o nascimento de flores de qualidade e com alto valor agregado.

Mercado promissor

Em 2017, a venda de flores registrou aumento de aproximadamente 15% no país. A média de consumo brasileira é de R$ 35 por pessoa a cada ano, segundo estudo do Instituto Brasileiro de Floricultura (Ibraflor), que aponta ainda Mato Grosso como 12º colocado no ranking dos Estados com maior consumo per capta.

“Aqui em Mato Grosso a produção é incipente, não tem grandes áreas de cultivo, mas apresenta muito potencial. Temos uma perspectiva muito positiva de inserir os produtos produzidos aqui [dentro do presídio] no mercado cuiabano”, destacou o professor da UFMT.

Do trabalho feito dentro do presídio, as detentas vão receber metade da renda. A outra parte será investida na manutenção do próprio projeto, idealizado e colocado em prática graças ao envolvimento de oito instituições, entre elas a Ordem dos Advogados do Brasil em Mato Grosso (OAB-MT), o Poder Judiciário, governo do Estado e a UFMT.

Oportunidade de ressocialização

Secretário-geral da OAB-MT, Flávio Ferreira afirma que, antes de se iniciar o projeto, foi feita uma pesquisa que verificou a falta dessa mão de obra neste setor. Justamente por isso, as presas serão capacitadas. A ideia é que, quem sabe, elas se tornem produtoras quando deixarem a cadeia.

“Os viveiros de Cuiabá e Mato Grosso não contam com mão de obra qualificada ao dispor. Então, a UFMT está aqui dentro capacitando. É um curso de extensão que capacitará essas mulheres que poderão ser absorvidas pelo mercado de trabalho”, concluiu.

A proposta faz parte de um objetivo antigo de quem administra o sistema prisional: reduzir os índices de reingresso de quem sai de uma cadeia.

Segundo o secretário adjunto de Administração Penitenciária de Mato Grosso, Emanuel Flores, em 2017, dos 817 presos que conseguiram uma vaga de trabalho depois de ganhar a liberdade, apenas dois acabaram voltando para trás das grades.

Presa há um ano e cinco meses, Márcia, aos 40 anos, terá sua primeira experiência profissional por meio do FloreSer. “Nunca trabalhei lá fora”, conta a mulher que admite ser usuária de drogas e revela uma condenação a 11 anos de prisão.

Privada de liberdade ainda aos 18 anos, Andressa enxerga no projeto uma chance de nascer de novo, junto com as sementes a serem plantadas. “Tomei como uma lição de vida que vai me ajudar lá na frente. Saindo daqui, com certeza vou procurar outra vida”, ela sonha.

Preocupada com o que fazer e como é a vida de alguém que já passou pelo “sistema”, Fernanda, também detenta, lembra que as oportunidades fora penitenciária não depende só da vontade de quem saiu de dentro dela.

“É algo que o sistema precisa. Quem conhece o sistema de dentro, sabe que as taxas de ressocialização são bem baixas e isso não é culpa dos reeducandos. O próprio sistema cria essa condição porque, se o reeducando só ficar aqui dentro parado, ocioso, pensando o que não deve, imaginando um monte de coisa, com certeza vai sair e repetir os mesmos erros. Isso muda se ele estiver aqui dentro trabalhando, estudando”, ela avalia.

Benefício social

Secretário de Segurança Pública de Mato Grosso, Alexandre Bustamante lembra que oferecer condições para que o detento trabalhe em uma atividade lícita quando sai da cadeia ajuda a reduzir os índices de criminalidade. “Quanto mais ressocializarmos as reeducandas, menos problemas temos para a Segurança, trazemos mais tranquilidade para a sociedade. Esse projeto faz isso”, ele comenta.

Já o supervisor do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF), desembargador Gilberto Giraldelli, defende a divisão do lucro com a comercialização das plantas com as detentas. Segundo ele, essa é uma forma de dar dignidade a elas e lhes permitir contribuir com o sustento de suas famílias, o que as faz se sentirem novamente úteis à sociedade.

(Foto: Ednilson Aguiar/O Livre)

“Não estamos mortas”

A escolha do cultivo de plantas, além do potencial econômico, teve como objetivo contribuir com o resgate da auto estima das presas. Na Ana Maria do Couto May outras propostas já em prática buscam a mesma coisa. É o caso da distribuição do kit de beleza, todos os finais de semana, e que inclui itens como secador de cabelo, chapinha, escova e cosméticos em geral.

“A maioria das reeducandas é muito vaidosa. Gostam de estar bem, arrumadas, com cabelo arrumado. Acho isso de extrema importância porque estamos aqui, mas não estamos mortas”, comenta Fernanda.

Para ela, esses momentos de auto cuidado que são proporcionados refletem na forma como elas encaram a vida. “A questão é não desistir de si próprio. Eu não vou me abandonar. É fazer a reeducanda saber que a vida vai além disso aqui”.

Quase solitárias

Esquecer como é a vida lá fora é algo fácil na penitenciária feminina. É que, embora as visitas – inclusive as íntimas – sejam permitidas, a realidade é que a fila de pessoas é bem menor se comparada, por exemplo, com a unidade masculina, a Penitenciária Central do Estado (PCE), que fica logo do outro lado da rua.

Aos visitantes das presas no Ana Maria, o horário de encontro começa às 9h e termina às 11h. Mas não são raras as vezes em que é perguntado se os parentes não gostariam de ficar um pouco mais. Em alguns casos, o dia de convivência com a família que está do lado de fora dos muros pode se estender até às 16h.

A maioria das reeducandas, no entanto, não tem família ou, se tem, não a recebe com frequência. Entre as que têm filhos, muitas optam por não deixar que eles vão até a penitenciária. As mães não querem que as crianças tenham contato com o ambiente prisional.

Para aquelas que são privadas da liberdade enquanto as crianças ainda são pequenas, a penitenciária tem um espaço de creche, com brinquedos e banheiro infantil. No momento, o local não é utilizado por ninguém.

(Com assessoria)

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