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A caixa-preta das verbas indenizatórias

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A caixa-preta das verbas indenizatórias

Com 1809 funcionários, sendo 600 concursados e 1209 comissionados – além de 24 deputados estaduais – a Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT) tem um custo de R$ 514.663.606,66 por ano, R$ 42,8 milhões por mês, R$ 1,4 milhão por dia, segundo previu a Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2017. Só com a folha de pagamento, a despesa chega a R$ 264.774.407,36 por ano, R$ 22 milhões por mês – uma média mensal de R$ 12,2 mil para cada funcionário. Aos deputados, contudo, cabe a maior fatia desse bolo.

Além do salário de R$ 25,3 mil, os parlamentares mato-grossenses podem gastar mensalmente até R$ 10 mil com combustível, têm direito a nove horas de voos por mês, mais R$ 70 mil para quitar a folha de pagamento do gabinete (o que permite a contratação de uma média de 25 funcionários) e, finalmente, dispõem da chamada Verba Indenizatória, uma ajuda de custo de R$ 65 mil por mês que, de acordo com um estudo de 2015 da Organização Não-governamental (ONG) Transparência Brasil, é a mais alta do Brasil. Mas essa não é uma peculiaridade única.

A verba indenizatória mato-grossense é também a menos fiscalizada do país. Instituída pela lei 9.493, de dezembro de 2010, com um limite de R$ 15 mil, foi regulamentada três anos depois pela Resolução 3.569/13, que proibiu gastos com propaganda eleitoral, entregou a cada deputado a responsabilidade de armazenar os comprovantes de gastos, permitiu o depósito do valor em conta corrente de cada parlamentar, os incumbiu de garantir o acesso aos gastos por meio da Lei de Acesso à Informação e, para que recebessem o dinheiro, os obrigou a apresentar um formulário preenchido com dados de gastos, solicitando o ressarcimento.

Em abril de 2015, cinco anos depois de instituída por lei, a verba indenizatória foi novamente regulamentada, desta vez por uma resolução (4.175/15) cujo texto, bem mais curto, manteve a proibição de gastos com “propaganda eleitoral de qualquer espécie” e a permissão para que o dinheiro seja depositado em conta corrente. Mas revogou todo o resto, incluindo a necessidade de preenchimento do formulário e a responsabilidade de garantir acesso a dados públicos. No mesmo mês em que a nova resolução foi aprovada, o decreto legislativo 42/15 instituiu um aumento de R$ 50 mil reais no valor inicial, passando de R$ 15 mil para R$ 65 mil – um salto de 333%.

Jean Forrer/O Livre

Verbas indenizatórias

 

O fato é que o dinheiro referente à verba indenizatória continua a cair na conta corrente de cada deputado estadual sem que precisem apresentar um só comprovante. Atualmente, as notas fiscais – que, segundo deputados e servidores da ALMT, servem para pagar hotéis, restaurantes, locomoção ou despesas de aliados políticos que vêm de longe e funcionários que integram comitivas – ficam em pastas de plástico. De acordo com a servidora Rosa Neide Sandes de Almeida, chefe de gabinete do deputado Valdir Barranco (PT), existe uma recomendação interna para que sejam armazenadas por até cinco anos, caso, por ventura, sejam necessárias. Como nunca são, permanecem acondicionadas pelos próprios deputados. E nunca aparecem publicamente.

A divulgação de informações públicas, como, por exemplo, o destino do dinheiro pago pela população a título de impostos, e que posteriormente se transforma no sustento dos poderes (como é o caso das verbas indenizatórias da ALMT) é garantido pelo artigo 37 da Constituição Federal, segundo o qual “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Além disso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) também assegura acesso a dados de verbas indenizatórias.

Em março de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou um mandado de segurança impetrado pelo jornal Folha de S. Paulo que pedia acesso aos comprovantes de gastos das verbas indenizatórias de senadores. O Senado havia reivindicado a condição de sigilo para tais documentos. Os ministros rejeitaram a hipótese por unanimidade. Na ocasião, o ministro Luís Roberto Barroso disse: “Os órgãos estatais têm o dever de esclarecer ao seu mandante, o povo, titular do poder político, como são usadas as verbas arrecadadas da sociedade para o exercício de suas atividades”.

Os gastos dos deputados de Mato Grosso deveriam ser públicos, mas a verdade é que estão escondidos sob a guarda severa de uma das mais clássicas táticas da burocracia brasileira: o jogo do empurra-empurra. O LIVRE solicitou acesso aos comprovantes de gastos das verbas indenizatórias por meio da lei 12.527/2011, a chamada Lei de Acesso à Informação (LAI). A ALMT negou acesso às informações, desobedecendo a lei, e não atendeu às demandas da reportagem.

Jean Forrer/O Livre

Verbas Indenizatórias

 

O jogo do empurra-empurra
Às 19h40 de 15 de março de 2017, uma quarta-feira, a reportagem do LIVRE encaminhou a seguinte mensagem à Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT), por meio do Serviço de Informação ao Cidadão (SIC) do Portal da Transparência, responsável por atender às requisições de informações públicas por meio da Lei de Acesso à Informação:

Boa noite, gostaria de ter acesso a todos os comprovantes fiscais de janeiro de 2016 até março de 2017 dos gastos com a verba indenizatória de R$ 65 mil a que cada um dos 24 gabinetes dos deputados estaduais da Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT) tem direito.

A resposta demorou oito dias e 16 horas. Chegou às 11h36 do dia 24 de março, composta por cinco arquivos em PDF seguidos da mensagem:

Prezado Senhor, anexo, encaminhamos resposta de vossa manifestação. Sempre à disposição. Atenciosamente, Jussileide R. Lessing da Ouvidoria-Geral da ALMT.

Os arquivos – cópias da lei que instituiu a verba e das resoluções que a regulamentaram – não constituíam a resposta para a demanda. Um deles era a cópia de um ofício assinado pelo secretário de Planejamento, Orçamento e Finanças da ALMT, Ricardo Adriane de Oliveira:

Senhor Ouvidor, em resposta ao Memorando 002/2017/OG-AL, informo a Vossa Senhoria que conforme a Resolução nº 3.569/2013, que regulamenta a concessão de Verba Indenizatória dos Deputados, no art. 2º, § 1º e 2º, diz que os documentos fiscais comprobatórios são de responsabilidade do membro do Poder Legislativo requerente. Informo ainda que, em 09/04/2015 a Resolução acima foi revogada pela Resolução nº 4.175/2015.

Quatro dias depois, em 28 de março, o LIVRE entrou em contato, por telefone, com a Ouvidoria-Geral da ALMT, para reclamar que a solicitação não havia sido respondida. A servidora Jussileide informou que uma nova solicitação formal deveria ser feita por meio do Portal da Transparência, desta vez requerendo mais especificamente os dados de cada um dos 24 gabinetes. “Tem que pedir para cada deputado”, explicou Jussileide. “Você vai ter que fazer outra manifestação que aí vou enviar para cada gabinete. Faz uma manifestação só, vou fazer processo para cada um deles”. Na sequência, a servidora anexou no processo digital a seguinte mensagem:

Prezado Senhor, conforme contato telefônico, informamos a vossa senhoria que com base na Resolução nº 3.569/03 no seu parágrafo 1º diz: “os documentos fiscais comprobatórios dos gastos, acervo de informação, ficarão em poder do membro do Poder Legislativo Requerente.” Sempre à disposição Atenciosamente, Jussileide R.Lessing da Ouvidoria-Geral da ALMT.

Repare que ela errou o número referente ao ano da resolução, que, em vez de 3.569/03 é 3.569/13.

No mesmo dia, a reportagem protocolou no SIC uma nova solicitação, que, não se sabe como, sumiu dos registros dias depois. Às 13h08 de 4 de abril, uma terça-feira, depois de perceber o sumiço das informações anteriormente protocoladas, fizemos uma terceira solicitação:

Boa tarde. Em 15 de março fiz uma solicitação por meio deste Serviço de Informação ao Cidadão (SIC) requerendo todos os comprovantes fiscais de janeiro de 2016 até março de 2017 dos gastos com a Verba Indenizatória de R$ 65 mil a que cada um dos 24 gabinetes dos deputados estaduais da Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT) tem direito. A resposta que me foi dada pela Ouvidoria se resumiu a leis e resoluções, que não foi o que pedi. Por meio de contato telefônico, a servidora Jussileide R. Lessing me orientou a entrar com novo pedido neste SIC, coisa que fiz, mas que de alguma maneira sumiu dos registros do site da ALMT. Agora, portanto, solicito novamente que a Ouvidoria obedeça à Lei de Acesso à Informação e forneça o conteúdo dos comprovantes fiscais de gastos com Verba Indenizatória de R$ 65 mil de cada um dos 24 gabinetes dos deputados estaduais de Mato Grosso no período entre janeiro de 2016 e março de 2017. Repito para ficar claro: solicito acesso a todos os comprovantes fiscais de gastos com a verba indenizatória de R$ 65 mil a que cada um dos 24 gabinetes dos deputados estaduais da Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT) recebeu de janeiro de 2016 até março de 2017.

Às 8h03 do dia 6 de abril, dois dias depois, veio uma resposta:

Prezado Senhor, vossa manifestação foi encaminhada para os devidos gabinetes, assim que obtermos resposta dos mesmos entraremos em contato com vossa senhoria. Atenciosamente, Jussileide R.Lessing da Ouvidoria-Geral da ALMT.

A mensagem era promissora. Às 13h58 de 3 de maio, uma quarta-feira, no entanto, a expectativa foi quebrada pelo Ouvidor-Geral da ALMT, Benedito Pinto da Silva (que, inclusive, recebe, por lei e todo mês, o equivalente a 40% da verba indenizatória dos deputados, cerca de R$ 26 mil, além do salário). A resposta derradeira foi anexada ao processo digital:

Prezado Senhor, conforme vossa solicitação, informamos a vossa senhoria que tendo em vista a Resolução nº 3.569/2013 que regulamenta a concessão de verba indenizatória dos deputados, informamos a vossa senhoria a impossibilidade de fornecer tais notas, tendo em vista que as mesmas ficam no arquivo pessoal dos referidos deputados. Benedito Pinto da Silva. Ouvidor-Geral.

Traduzindo: Benedito usou a mesma resolução a que haviam recorrido anteriormente e ignorou por completo o teor da solicitação. Mais além: a resolução utilizada pelos altos funcionários da ALMT para justificar o não encaminhamento das informações públicas solicitadas foi revogada e substituída pela Resolução 4.175/15, que nada diz sobre o armazenamento dos comprovantes.

Os gabinetes
Na tarde de 4 de abril, terça-feira, a reportagem do LIVRE solicitou acesso aos comprovantes de gastos da verba indenizatória no gabinete do deputado Guilherme Maluf (PSDB), que havia assumido a 1ª Secretaria da Mesa Diretora da ALMT. “Os comprovantes ficam na primeira secretaria”, respondeu o chefe de gabinete, que se identificou como Hélio. Na primeira secretaria, Neusa, que se disse assessora direta do deputado Guilherme Maluf, ao explicar onde estariam os comprovantes, foi categórica: “É com o chefe de gabinete”.

No mesmo dia, no gabinete do deputado Pedro Satélite (PSD), uma assessora informou que tais informações só poderiam ser averiguadas com o deputado. “Quer deixar seu contato para a gente retornar amanhã?”, questionou ela. Nunca retornaram.

No gabinete do deputado Ondanir Bortolini (PSD), o Nininho, duas assessoras trabalhavam numa mesma sala. Indagada sobre a possibilidade de acesso aos comprovantes, uma delas, Mariana Saggin, respondeu: “Eu acho que nem é mais no gabinete, é no sistema, porque a Assembleia implantou o sistema de Transparência e tudo o que é gasto entra nesse sistema. Mas vou verificar com o jurídico, só um pouquinho”. Ela então se levantou, foi até uma das salas e voltou fazendo um alerta para sua colega, a assessora Vania Cristina Neves: “A Ariadne falou para eles falarem com o Renato [Renato Epaminondas, assessor direto de Nininho]. O Renato que responde todas as perguntas. É lá na outra sala”.

A reportagem do LIVRE se dirigiu à outra sala e solicitou à recepcionista uma conversa com Renato ou com o deputado Nininho. Minutos depois, a assessora Vania apareceu e se dirigiu à sala de Renato. Em seguida, saiu, em silêncio. Pouco tempo depois, a assessora Mariana veio com o seguinte discurso: “Ele não está aqui. Está fora. O deputado e o Renato”, disse ela. “Falei com ele e ele falou: ‘Isso é na Secretaria de Finanças, com o secretário de Finanças, Ricardo’”, prosseguiu, acrescentando: “Nada fica aqui no gabinete”.

Na sequência, Mariana informou que o deputado Nininho “presta contas para a Secretaria de Finanças”. “Quem tem todo o controle de todos os gastos de todos os deputados é a Secretaria de Finanças”.

O secretário de Finanças, Ricardo Adriane, informou que os comprovantes são de responsabilidade de cada deputado.

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