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O sonho dourado vai chegando ao fim na montanha que sangra

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O sonho dourado vai chegando ao fim na montanha que sangra

Ednilson Aguiar/O Livre

Garimpo da Serra da Borda, em Pontes e Lacerda

Garimpeiros a 40 metros de profundidade na Serra da Borda, em Pontes e Lacerda

 

Eles chegam ao garimpo quase sempre de carona. Antes de pegar a estrada de terra que leva à Serra da Borda, a 40 quilômetros de Pontes e Lacerda e a 480 quilômetros de Cuiabá, saltam de algum ônibus velho com a camisa aberta até a barriga, o boné torto e barato inclinado sobre a testa, calça e sapatos surrados. Vêm do Pará, do Maranhão, de Rondônia, do Amazonas, de Goiás, ou de algum outro rincão do estado. São quase todos pobres, embora alguns poucos tenham ficado muito ricos. Uns vão procurar ouro diariamente, depois voltam para dormir na cidade. Outros ficam por lá.

Eles moram em barracas de camping montadas sob tendas de plástico, dormem em redes embaixo de goteiras geladas que escorrem sobre a testa e acordam molhados e hipotérmicos. Nas manhãs de sábado, costumam despertar ao lado de prostitutas seminuas deitadas em colchonetes estendidos sobre o chão da floresta. Adentram no meio do mato para caçar macacos e jabutis. Comem queixadas, pacas e o que mais cair na arapuca. Engolem as frutas da mata e serram as árvores para escorar o túnel quente e profundo do garimpo com a madeira desmatada – uma estratégia para que o peso da montanha não desabe em cima de suas cabeças.

Eles trabalham a 40 metros da superfície. Às vezes, 60. Respiram com a ajuda de ventiladores, suando numa temperatura superior a 35 graus centígrados. Quando estão embaixo da terra, a comunicação com o mundo de cima acontece por um cano oco e longo de borracha preta – o telefone dos garimpeiros. São dotados da coragem de quem não tem escolha. Cumprem turnos de 12 horas no coração da montanha, iluminados por lâmpadas improvisadas das 6h às 18h e das 18h às 6h. “Lá embaixo, se você risca o isqueiro, o fogo sobe”, disse um deles, ao explicar a falta de oxigênio que vigora no escuro das profundezas. Alguns adquiriram doenças respiratórias por conta da longa exposição ao pó. Outros desenvolveram uma espécie de claustrofobia que os afastou dos trabalhos subterrâneos.

Ednilson Aguiar/O Livre

Garimpo da Serra da Borda, em Pontes e Lacerda

Garimpeiro peneira a terra em busca de ouro em Pontes e Lacerda

Quando estão na superfície, carregam maços de dinheiro nos bolsos, baldes de pedra, sacos de terra e ferramentas pesadas sobre os ombros. São jovens e velhos, uma maioria de homens, que esperam um futuro melhor, fazem planos sem muita convicção e entornam latas de cerveja antes do café da manhã. Eles têm os dedos grossos e calejados, a pele curtida pelo sol e pela lama. Se nem sempre são largos e parrudos, são sempre fortes e desconfiados. Nunca querem ser filmados (embora não se importem de falar sobre o passado). São seres incansáveis, sem raízes ou vínculos, que fumam cigarros curtos enrolados em folhas de caderno enquanto repetem a rotina de escavar a montanha à procura das fagulhas douradas pulverizadas entre as rochas – o primeiro sinal de que a massa de ouro está perto.

Às 6h21 do dia 18 de março, um sábado, eram quase 3.000 os garimpeiros que circulavam como formigas sobre (e sob) a terra que recentemente ganhou a alcunha de “Nova Serra Pelada”, numa referência ao maior garimpo a céu aberto do mundo, explorado nos anos 1980 em Curionópolis, no Leste do Pará. O de Pontes e Lacerda não chega a tanto, ao menos no tamanho.

Com uma área geográfica que se estende da planície ao cume de um dos morros que compõem a Serra da Borda – ou Serra do Caldeirão -, o garimpo preenche os fundos da fazenda de Sebastião Freitas de Azambuja, irmão do ex-deputado estadual Carlos Antonio de Azambuja. Um dos garimpos ilegais mais movimentados da atualidade, está dividido em duas partes. Há o “pasto”, uma área plana que precede a subida da serra e de onde os garimpeiros mais pobres retiram o chamado “reco”, sacos de terra que, depois de peneirada, pode render alguns gramas de ouro. E há o “buracão”, no alto do morro, onde só os mais poderosos, cheios de maquinários e geralmente bancados por financiadores externos, podem explorar. Os que nada encontram seguem cheios de fé e esperança, e os que acham muito ouro permanecem quietos e sérios – passam despercebidos. Os mais poderosos encomendam dinamites, geradores, britadeiras e detectores de metal. Fazem gambiarras elétricas e instalam bombas de sucção que sugam a água da chuva e diminuem o risco do desmoronamento. Eles mantêm aceso o comércio da cidade, principalmente o de combustível e bebidas, porque os geradores são movidos a diesel, e o sonho muitas vezes se perpetua à base de álcool.

gariEdnilson Aguiar/O Livre

Garimpo da Serra da Borda, em Pontes e Lacerda

Dificuldade para buscar ouro: “Na rocha, é meio metro por dia”, diz garimpeiro

Tem sido difícil controlar a circulação de garimpeiros na fazenda de Azambuja. Desde setembro de 2015, houve quatro invasões – e por três vezes a área foi retomada a mando da Justiça Federal. No início, a foto de um gigantesco bloco de ouro que percorreu a internet levou mais de 7 mil pessoas a invadir a área. “Mas aquilo era notícia falsa”, avisa Sebastião Dantas, 57 anos, que pertence ao grupo dos mais pobres.

Desde que nasceu até completar 31 anos, Sebastião acordou diariamente às 2 horas da madrugada para ordenhar as vacas da família, cujo leite ia parar nas mãos do leiteiro às 6 horas, em Araguatins, no Tocantins. Talvez por isso não tenha sido difícil madrugar, por tantas vezes, na companhia de colegas garimpeiros que invadiam fazendas alheias durante a noite, carregando picaretas e marteletes, uma caminhada que se estendia por oito quilômetros mata adentro. No fim do dia, escondiam as ferramentas na floresta e se embrenhavam no cerrado para encontrar um caminho discreto de volta à cidade.

Eles mantêm aceso o comércio da cidade, principalmente o de combustível e bebidas, porque os geradores são movidos a diesel, e o sonho muitas vezes se perpetua à base de álcool

Sebastião é um homem franzino, encurvado, que conversa em voz baixa e tem o rosto riscado pelas marcas do tempo. Ele conta que foi um dos primeiros garimpeiros a chegar à região. Começou a buscar ouro em março de 2014 nas terras do fazendeiro Celso Luiz Fante, vizinha à fazenda de Azambuja. “Éramos oito no começo”, disse. “Depois, uns cinquenta”. Um ano depois, a movimentação começou a aumentar nas terras ao lado, e Sebastião migrou. Hoje, para sustentar a mulher e os dois filhos, ele acorda às 5 horas e espera uma carona para o garimpo em um posto de gasolina às margens da estrada de terra batida que leva à Serra da Borda, com as roupas surradas, o boné torto e barato lhe caindo sobre a testa. Da areia que leva para peneirar em casa, consegue tirar o sustento da família. “Dá para fazer uns oitocentos real por mês (sic)”, diz.

Sebastião ainda não sabe, mas sua fonte de renda pode estar perto do fim. A Secretaria de Segurança Pública prepara uma quarta reintegração. “Estamos debatendo com a Polícia Federal e os ministérios públicos estadual e federal para saber se haverá uma nova reintegração de posse”, disse o secretário Rogers Jarbas, no fim de março. Segundo ele, integrantes da coordenadoria de inteligência do Ministério da Justiça e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) também participam das reuniões. “Constatamos 2.500 pessoas no garimpo”. A constatação, segundo o delegado regional de Pontes e Lacerda, Rafael Scatolon, de 33 anos, surgiu da análise de imagens aéreas feitas por drone. “Estamos fazendo o monitoramento do local e todas as informações que nos chegam estão sendo repassadas à diretoria de inteligência da Secretaria de Segurança Pública”, contou. “Fizemos um sobrevoo com drone esses dias, foram captadas algumas imagens para que pudesse ser comunicada à Secretaria de Segurança Pública essa nova ocupação dos garimpeiros”.

Ednilson Aguiar/O Livre

Garimpo da Serra da Borda, em Pontes e Lacerda

Carlos Henrique, 23 anos, trabalha na equipe de Francisco

A partir das imagens aéreas, Jarbas decidiu, na semana passada, iniciar operações de controle de entrada e saída no local. “Estamos reforçando a atuação no entorno do garimpo porque há um risco muito grande de acidente”, afirmou ele, em entrevista ao LIVRE no último domingo, 23. No dia seguinte, policiais civis e militares iniciaram barreiras na estrada que leva ao garimpo. “Vimos que estava subindo muito maquinário, sem qualquer estrutura e sem qualquer capacidade técnica. As pessoas entram nesses túneis que não têm qualquer tipo de sustentação e podem ceder, ainda mais no período de chuvas”. Segundo o secretário, o risco de desmoronamento é grande e o desmatamento aumenta diariamente – mas ainda não há planos para a reintegração de posse. “Estamos fazendo um levantamento para verificar se vai ou não ocorrer a retomada da área”, informou. “Estamos analisando a viabilidade da intervenção imediata e quais medidas adotar para evitar que uma nova grande invasão ocorra, só preciso de um pouquinho mais de tempo”.

Ednilson Aguiar/O Livre

Garimpo da Serra da Borda, em Pontes e Lacerda

Cerca de 40 garimpeiros chegam a trabalhar no mesmo buraco em turnos de 12 horas

No alto da Serra da Borda, enquanto o som das motosserras ecoa pela mata, o jovem Edenilson, de 18 anos, aguarda sentado o almoço que os colegas preparam em um fogão à lenha improvisado sob uma lona preta. “Em 2014, encontraram 80 quilos de ouro no filão (espécie de riacho que corre entre as fendas da montanha)”, conta, enquanto fuma um cigarro grosso e fedorento. Edenilson veio de Machadinho D´Oeste, em Rondônia, e está há dois anos no garimpo. Busca o ouro para quitar a faculdade de engenharia mecânica que sonha cursar em Cuiabá. “É um jeito de fazer dinheiro fácil e rápido”, diz, no que é reprimido por um colega mais experiente: “Mas é também um jeito de fazer dinheiro nenhum”, decreta Francisco das Chagas, 32 anos.

Francisco está há um ano cavoucando a terra na serra da Borda. Até agora, nada encontrou. Há cinco anos, perdeu o emprego de vibradorista na Usina Hidrelétrica Santo Antônio, em Rondônia, deixou em Porto Velho a mulher, a filha de dois anos e uma dívida de R$ 12 mil em contas atrasadas, e chegou ao garimpo à procura de renda. “Minha mulher me deixou porque eu não mandava dinheiro”, contou Francisco, que em um ano conseguiu tirar R$ 2 mil da terra. “Tinham 7.000 garimpeiros aqui. Se 1.500 pegou ouro foi muito”.

Ednilson Aguiar/O Livre

Garimpo da Serra da Borda, em Pontes e Lacerda

Francisco está há mais de um ano no garimpo: até agora, nada de ouro

Para tirar ouro mesmo, Francisco conta que é preciso no mínimo 40 homens para um buraco. Bancado por um fazendeiro, ele hoje lidera uma equipe de 30 garimpeiros que trabalham diariamente. O financiador dá a eles comida, escovas de dente, remédios, panelas e ferramentas – em troca, pede 20% de todo o ouro que encontrarem. O resto é dividido em partes iguais. O homem que contratou Francisco e seus 29 colegas gastou cerca de R$ 100 mil em pouco mais de um ano. Até agora, o investimento não rendeu nem um grama de ouro.

Mesmo assim, o número de caminhonetes Toyota Hilux é expressivo no garimpo. Na manhã daquele sábado, 18 de março, havia mais de 20 estacionadas em fila. Na maior parte, pertencem a fazendeiros da região que investem na caça ao ouro. Uma jornada cada vez mais infrutífera, conclui Francisco. Segundo ele, a maior parte do ouro foi retirada no começo, lá em 2015. Atualmente, a floresta se converteu numa imensa clareira de terra vermelha e lisa. Sem a absorção natural da mata, as águas da chuva escorrem pelos buracos como se fosse o sangue da serra perfurada, formando uma cachoeira que lava o morro do topo ao pasto. De vez em quando, sobra algum ouro na corredeira. Na maioria das vezes, não aparece nenhum.

Na próxima reportagem da série sobre o garimpo em Pontes e Lacerda, a história dos garimpeiros que se deram bem.

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