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Jardim Califórnia

Quarteirões triangulares, circulares, pentagonais, hexagonais e até em formato de bota. Ruas em ziguezague que levam a lugar nenhum. Encruzilhadas com até cinco vias e becos sem saída. Lançado em meados da década de 1970, o bairro Jardim Califórnia se tornou, em razão de seu inusitado projeto viário, uma lenda urbana que ainda hoje, com a popularização da localização por satélite, faz tremer quem se aventura em seus domínios.

Ficar perdido por ali é uma possibilidade concreta até mesmo para motoristas profissionais. O taxista Luiz Carlos da Luz, com 19 anos de experiência em Cuiabá e arredores, conta que certa vez teve que pedir auxílio a colegas por meio do rádio para conseguir achar uma saída.

“Tem rua ali que se encontra com ela mesma. Você anda, anda, e chega no mesmo lugar. Para piorar, tem pouca gente fora das casas e nenhum comércio, ou seja, não tem ninguém para dar uma informação. Quem não conhece sofre muito”, relata.

Em quase cinquenta anos de história, a fama cresceu com o bairro e, mais recentemente, chegou às redes sociais. Em muitos dos chamados “memes”, a região, que abriga os também complicados “jardins” Shangri-lá, Luciana e Costa do Sol, é descrita como um traiçoeiro sumidouro de gente.

Jardim Califórnia

Na internet, páginas de humor como a do personagem “Xômano que mora logo ali” ironizam o complexo desenho das ruas do bairro

O que poucos sabem é que o traçado irregular foi resultado de um planejamento com objetivos bem específicos: reduzir a velocidade média dos carros e, mais importante, impedir que o loteamento, cercado por quatro grandes avenidas (Fernando Corrêa, Beira-Rio, Carmindo de Campos e General Mello), se tornasse um atalho para o tráfego pesado.

O advogado aposentado Walmir Leite da Silva, de 79 anos, viu de perto essa ideia se concretizar. Seu sogro, o célebre professor Benedito Figueiredo (morto em 2013, aos 103 anos), era o herdeiro dos 50 hectares de terras onde mais tarde seria implantado o empreendimento.

“Aquelas terras já pertenceram ao Barão de Melgaço e, ainda em 1919, foram compradas pela família do meu sogro. Quando uma empresa do Paraná manifestou o interesse em fazer ali um loteamento, foi na hora certa”, relata.

A construtora, Selva Turismo e Empreendimentos Imobiliários, queria implantar um bairro de classe média alta, nos moldes do loteamento Cidade Célula Santa Rosa (hoje chamado apenas de Santa Rosa), no outro lado da cidade.

Jardim Califórnia

Silva conta que, com a implantação da avenida Beira-Rio nas imediações, seu sogro vinha buscando alternativas para dar finalidade àquela área. Temia, conta ele, que se tornasse alvo de invasores. “Tenho certeza de que, sem aquela parceria, meu sogro teria perdido a área. As invasões ocorriam por toda parte em Cuiabá naquele tempo”, relembra.

Assegurada a destinação, veio o momento de planejar as ruas. Foi então que se percebeu que um traçado regular tradicional, em quadriláteros, atrairia para o bairro o tráfego pesado das avenidas que o circundam. “Se o projeto fosse como um tabuleiro de Xadrez, o bairro viraria ponto de passagem e a característica residencial, que era o que se buscava, seria prejudicada”, afirma o advogado.

Um engenheiro de Curitiba foi convocado para resolver a questão. E a solução proposta foi justamente um traçado fora do padrão, destinado a reduzir a velocidade média dos carros e, com isso, afugentar os motoristas eventuais. “Surgiu assim essa formação desigual e sinuosa, com esquinas desencontradas, totalmente sem retângulos”, diz o empresário José Eduardo Leite da Silva, o Dudu Leite, filho de Walmir.

Jardim Califórnia

O projeto tinha outros aspectos inovadores para a época. Na ilha central, circundada pela rua Sacramento, estava prevista a implantação de um centro comercial -um shopping center que nunca chegou a se concretizar. “A partir dali o bairro se abria, com ruas por fora e outras que se direcionavam para ele, saindo desse centro”, diz Dudu.

O plano para afugentar o tráfego externo deu certo e o movimento nas ruas da região acabou por se tornar muito menos intenso do que poderia. Na década de 1980, porém, a inauguração de um icônico espaço de eventos, o Maison Marie Louise, hoje desativado, atraiu para o bairro uma legião de forasteiros a caminho de festas de formatura, casamentos e aniversários.

Surgiria ali, relembra o empresário, a fama de labirinto. “Havia muitas formas de se chegar ao Maison. E todas muito complicadas para quem não conhecia”, relata Dudu.

Ednilson Aguiar/O Livre

Jardim Califórnia

José Eduardo Leite da Silva, o Dudu Leite: família comprou a área, que chegou a pertencer ao Barão de Melgaço, em 1919

Proprietário de um restaurante no vizinho Jardim Luciana, ele diz que a família se diverte ao ver na internet as piadas sobre o tema. E garante que, apesar dos aplicativos de GPS, continua a receber pedidos de motoristas aflitos, cansados de andar em círculos pelo bairro.

Tanto que mandou imprimir várias cópias de um mapa no qual, além de indicar as saídas do bairro, conta um pouco da história da ocupação da região. A principal dica para os novatos, segundo ele, é se guiar pelas ruas Los Angeles e Santa Fé. “A partir delas, em qualquer rumo que se tome, você chega às avenidas do entorno. Não é fácil, pois nenhuma delas segue exatamente em linha reta, mas é certamente menos difícil do que se aventurar por conta própria”.

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