Num certo domingo cantávamos o hino “Amazing Grace” na igrejinha que eu frequentava na Ilha Grande do Havaí. A igreja era uma casinha de madeira encarapitada no platô de uma das partes mais altas da ilha. Ela tinha sido construída e usada na costa e depois de algumas décadas fora transportada por inteiro, puxada por burros para a região chamada de Waimea.

O interior era simples. No espaço cabiam no máximo 40 pessoas se se apertassem bem nos bancos de madeira. As paredes internas eram brancas, contrastando com a pintura vermelha do lado de fora, que fazia com que a igrejinha pudesse ser vista à distância. Por um momento olhei para congregação multicolorida e multinacional reunida ali. Não éramos muitos, trinta no máximo.

Alguns jovens na frente cantavam de forma desencontrada, o órgão eletrônico lento demais e a jovem solista, nervosa, rápida demais. Mas os rostos contritos, as lágrimas, as coreografias que alguns faziam com as mãos, outros com o corpo, apontavam para uma espécie de transporte místico para uma realidade superior, ancorado numa convicção profunda da realidade espiritual que o hino tentava expressar.

Fomos “salvos” todos de nosso pecado, de nosso desencontro pessoal, por uma graça que não merecemos. Estávamos todos ali na igrejinha, ao pé da cruz. Naquele momento entendi um pouco da importância política da cruz. É, engraçado, igreja lugar estranho para se pensar sobre política. Sempre que pensamos em realidade espiritual, pensamos no além, não em questões terrenas, comezinhas como a política. Não é bem assim.

Deixe-me explicar. A leitura da Bíblia nesta lente extremamente subjetiva é uma coisa recente na história do Cristianismo. A cruz certamente significa salvação, remissão de pecados e a experiência pessoal de perdão. Mas tem mais. A cruz gera em nós e na sociedade que olha para ela resultados que podem ser medidos em termos objetivos.

A história nos mostra que os países de origem protestante têm a salvação pessoal como centro nervoso de sua teologia, e por implicação direta no centro de sua visão de mundo. Essas sociedades foram construídas tendo o valor do indivíduo como sua pedra fundamental. Cada ser humano tem valor próprio porque foi criado por Deus e recebeu de Cristo o sacrifício supremo na cruz.  Este valor atribuído ao indivíduo tem implicações sócio-políticas profundas.

Porque eu fui criado com amor e mesmo tendo pecado – o próprio Criador envia seu filho que se sacrificou por mim –, eu tenho valor eterno. Esse valor intrínseco eu transfiro a tudo o que me cerca e a tudo o que faço. Portanto, a primeira implicação da cruz é a vitória contra o niilismo. Não é o que faço que me atribui valor, mas o contrário. Quem eu sou atribui valor a tudo o que eu faço.

Tudo o que vou produzir na vida carrega a semente do valor divino, porque eu estou fazendo. Não existe vida ociosa, não existe trabalho menor. Se sou um lixeiro, sou o melhor lixeiro, porque sou eu que atribuo importância à tarefa que desempenho e não o contrário.

Outra implicação é a liberdade. Porque tenho valor, sou inerentemente livre. Qualquer coisa que queira me escravizar ou diminuir meu potencial de produzir o bem não pode ser legitimada socialmente. A liberdade é um dom espiritual de Deus, não é uma conquista, não é algo que o Estado me dá, mas é uma função do se encontrar humano diante da cruz com valor individual intrínseco.

Ao pé da cruz também tenho consciência individual plena. Sei quem eu sou. Sou amado, mas ao mesmo tempo tudo o que eu fiz de errado está diante de mim, sou plenamente responsável por meus erros. Ao pé da cruz não tenho desculpas. Meus problemas pessoais não são culpa do governo, da minha liderança, minha família. Quando estou diante da cruz a minha raça, cor da pele, gênero ou classe social não me servem de muleta.

Não importa como fui tratado, as micro ou macro-agressões que sofri, ou como a minoria cultural a que pertenço é percebida na sociedade. Porque Deus me atribui valor e me coroa com liberdade, diante da cruz o que importa são minhas escolhas, minha resposta a ele. Diante da cruz o que importa é meu arrependimento e a graça e o perdão que recebo.

Não existem políticas públicas suficientes no mundo que tenham o poder de cura da sua graça infinita. Não existe governo poderoso o suficiente para gerar em mim o que um simples olhar para a cruz é capaz de me dar.

As colônias britânicas na América no século XVIII começaram a ter as suas raízes sociais elitistas minadas quando o evangelista George Whitefield viajava pela costa leste liderando grandes reuniões de avivamento. As reuniões de Whitefield congregavam pessoas de todas as classes sociais, escravos, senhores, ricos e pobres, mulheres e homens. A religião, antes elitizada da aristocracia de Virgínia, nas palavras de Whitefield se fazia compreendida e acessível e brindava os presentes com a noção de valor pessoal, liberdade e responsabilidade individual.

Antes de entender a cosmovisão americana, eu tinha um pouco de birra com o esmero com que tudo aqui é tratado. Você vai visitar uma cachoeirinha minúscula e as placas, os panfletos, o caminho para chegar até lá, tudo demonstrava para mim uma hipervalorização do lugar. Eu me irritava com o que eu pensava ser um orgulho americano exagerado de tudo o que é deles.

Hoje eu entendo que isto não é orgulho, é atribuir valor. Essa mentalidade da excelência e da valorização de tudo está presente nos menores detalhes, desde embalagem de suco até pontos turísticos. Eu me irritava também com o senso exacerbado de responsabilidade pessoal que eles têm. Custei para entender que as pessoas que têm valor em si mesmas sabem que são livres para tomar suas decisões na vida. Não me entenda mal, de maneira nenhuma estou dizendo que a sociedade americana é perfeita. Mas os valores que estabeleceram esta nação certamente são.

Whitefield pregava essa consciência adquirida individualmente ao pé da cruz. E ela acabou se tornando rapidamente o senso comum, ou a pressuposição fundamental sobre a qual nasceu a sociedade americana, que é certamente a experiência social mais bem-sucedida da história humana.

Naquele domingo de manhã olhei para o nosso pequeno ritual de adoração na igrejinha de madeira com outros olhos. Não celebrávamos apenas uma salvação etérea e distante. Celebrávamos os pilares democráticos do que se tornou a maior experiência social da história. Na próxima vez que você olhar para uma igreja a chorar pelo perdão ao pé da cruz, saiba que o produto desse choro é uma sociedade livre e consciente do valor de cada um que faz parte dela.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros




Como você se sentiu com essa matéria?
Indignado
0
Indignado
Indiferente
0
Indiferente
Feliz
0
Feliz
Surpreso
0
Surpreso
Triste
0
Triste
Inspirado
0
Inspirado

Principais Manchetes