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Desembargo de área rural: APF, uma licença para inglês ver

A Autorização Provisória de Funcionamento da Atividade Rural (APF) vale para algo ou só serve de enfeite?

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Desembargo de área rural: APF, uma licença para inglês ver
(Foto: Ednilson Aguiar / arquivo / O Livre)

Um dos maiores problemas dos produtores rurais decorre de existência de embargo administrativo sobre a propriedade atrapalhando a produção e comercialização da produção agrícola, a geração de renda, a geração de empregos e o exercício de garantias fundamentais mínimas então previstos na Constituição.

Porém, grande parte destas limitações de uso de área rural seria solucionada se tanto os órgãos de fiscalização ambiental quanto o Judiciário atendessem o que determina a lei quando sanada a razão da imposição da restrição de uso através da Autorização Provisória de Funcionamento da Atividade Rural – APF.

Tentando deixar o juridiquês de lado, na medida do possível, a questão principal é: A APF vale para algo ou só serve de enfeite?

Antes de mais nada: no estado de Mato Grosso o exercício de atividades de agricultura e pecuária extensiva e semi-extensiva é licenciado e permitido pela Autorização Provisória de Funcionamento da Atividade Rural – APF emitida pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente – SEMA.

Mesmo as atividades de baixo impacto ambiental, assim definidas pelo CONAMA, devem possuir licença emitida pelo chamado Órgão Licenciador, ou seja, aquela parcela do Estado responsável por estabelecer os limites e condições de funcionamento das “atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos naturais”.

Considerando a notória extrema morosidade dos processos de licenciamento, foi estabelecida a APF como forma de não arrastar por anos a fio a permissão mínima para que o cidadão possa trabalhar na sua propriedade rural, sendo que a sua emissão se condiciona à assinatura de termo de compromisso ambiental como exigido em lei.

Em suma: a APF indica de maneira expressa qual o perímetro da propriedade rural no qual pode ser desenvolvida a atividade de agricultura e pecuária extensiva e semi-extensiva conforme as regras legais vigentes. Ainda que leve o nome de “provisória” e seja juridicamente definida como “licença precária” (porque o Estado pode mudar seus limites sem prévio aviso), é a licença para exercício imediato da atividade e deve ser obedecida por todos, desde o proprietário até a integralidade do aparato estatal. Ponto.

A sua emissão pela SEMA, dizem os detratores, se dá “de forma automática”; porém, o que omitem os algozes é que para ser emitida a licença leva-se em conta uma acurada análise prévia realizada de forma computadorizada seguindo dados técnicos-científicos validados pelo Estado de Mato Grosso, pela SEMA, pelo IBAMA, pelos ministérios públicos etc. confrontando os limites da propriedade rural com uma base de dados (inicialmente sugerida, inclusive, por uma ONG ambientalista) que delimita as áreas em Mato Grosso sobretudo quanto às áreas de reserva legal, áreas de preservação permanente, áreas de uso restrito e áreas consolidadas.

Assim, não importa o que o produtor, através de seu engenheiro, indique como área consolidada, por exemplo, já que a APF só será emitida quanto ao perímetro que o órgão licenciador considera como consolidado – o que inexoravelmente implica que a área reconhecida pela SEMA quase sempre menor que a área consolidada de fato, não havendo prejuízos ambientais, mas sim aos proprietários.

No entanto, nunca saberemos se por desconhecimento e falta de domínio do tema – ou militância – alguns órgãos e alguns empregados do povo de forma institucional e pontual se negam a reconhecer a validade da licença ambiental, ainda que o instituto esteja em vigência há anos e sem questionamento efetivo de sua validade. Se se perguntar, todos dirão que a APF existe e é válida, ainda que não aceitem os seus efeitos práticos para fins de desembargo.

A questão é simples: no perímetro em que a APF autoriza a atividade agropastoril é dever de toda e qualquer ramificação do aparato estatal reconhecer a sua legalidade, vigência e conseqüências como o desembargo – gostando ou não do resultado, não importa.

Por conseqüência, não cabe nem ao IBAMA, nem ao MPE, nem ao MPF, nem mesmo ao Judiciário tecer considerações sobre a APF emitida ou sobre a conduta que gerou o embargo para negar sua validade e manter o embargo cuja causa de imposição foi resolvida pela emissão da licença – do contrário, ela será apenas um enfeite jurídico relegado de forma dissimulada ao ostracismo e ineficácia.

Pouco importa se a supressão foi com ou sem licença em área passível, se a área então considerada reserva legal foi desmatada (desde que antes de 22/07/2008), se existe área de preservação permanente degradada (cujo uso jamais é permitido pela APF): se há um perímetro abarcado pela APF, nele se podem desenvolver as atividades nela permitidas.

A APF, por sinal, não permite a realização de novas supressões de vegetação (em área consolidada ou não) ou a prática de queima controlada, ela permite a atividade apenas em perímetros que inequivocamente são e continuarão sendo destinados à agricultura e pecuária – é esta a sua única função.

Se na licença for identificada alguma falsidade, algum desvio ou alguma legalidade, por exemplo, deve ser oficiado ao órgão licenciador que preste esclarecimentos (com devidos encaminhamentos aos órgãos persecutórios), e não conjecturado que ela está em desacordo com a “lei” sem indica-la de forma clara e objetiva como incorreta e em qual ponto; o que fazem ultimamente de forma oblíqua para negar o levantamento de termo de embargo sobre o perímetro já legalizado.

Por tal razão óbvia não existe “entendimento” ou “interpretação” que justifique negar validade a um documento oficial para justificar a manutenção da restrição de uso (embargo) de determinada área.

Infelizmente a crônica mato-grossense evidencia que, hoje, a APF é apenas um enfeite já que para fins de desembargo de área rural o IBAMA, por exemplo, não a reconhece como licença para exercício de atividade agropastoril para fins desembargo de propriedade rural embargada por ausência de licença para exercício de atividade agropastoril (!) porque “o CAR não foi validado” e “há déficit de reserva legal” entre outras pérolas (anti)jurídicas.

Outra alegação é de que se a houve desmate ilegal e a propriedade estaria formalmente com déficit de área de reserva legal – ARL (que nada mais é que uma parcela de 35% a 80%[61] expropriada pelo Estado e, como tal, sem indenização, na qual não se podem desenvolver atividades agropecuárias); segundo eles, mesmo que as supressões sejam anteriores a 22/07/2008[63] não pode haver o exercício de atividade no perímetro de “reserva legal degradada” (mandando às favas o disposto em lei e o marco legal estabelecido justamente como forma de legalizar imediatamente a utilização destas áreas sem que seja necessária a sua regeneração in loco).

Mais ainda, alegações esdrúxulas de que seria uma “licença meramente declaratória” (SIC) como se ela não fosse uma licença, emitida pelo Estado e se baseasse exclusivamente em dados oficiais após requerimento; do contrário, novamente serviria apenas de ornamento – e para aumentar o custo da máquina estatal por emitir uma licença (montando todo um aparato técnico e de servidores) sem utilização prática.

Uma vez obtida a APF, o perímetro por ela autorizado para exercício de atividade agropastoril sobre o qual penda possível restrição de uso decorrente de embargo administrativo (por supressão de vegetação sem licença ou em desacordo com a licença então obtida ou mesmo falta de licença para exercício da atividade – antigamente autorizado pela Licença Ambiental Única – LAU) impõe o desembargo não interessando o grau de desconhecimento jurídico ou de militância ambientalista de quem “analisa” o desembargo.

É preciso chamar os bois pelo nome: a licença para exercício de atividade agropecuária permite ou não permite o exercício de atividade agropecuária?

Qual a segurança jurídica existente quando o órgão responsável pelo licenciamento permite a utilização de um perímetro e, por outro lado e ao mesmo tempo, outro órgão (se não o mesmo!) mantém proibido o uso do perímetro correndo risco de acusações criminais, cíveis e administrativas?

Se o órgão licenciador permite o uso, sequer deveria ser necessário que se recorresse aos órgãos fiscalizadores para “requerer” o desembargo, mas sim informá-los de que nos limites da licença qualquer restrição de uso advinda de embargos está automaticamente suspensa.

O que falta não é regulamentação do tema, o que falta é o Estado aplicar a legislação vigente afastando o desconhecimento jurídico sobre o tema que permeia as instituições (mesmo aquelas sobre as quais impõe-se dever de conhecimento), retirando as camadas de lixo ideológico que vêm impedindo que a lei seja aplicada e responsabilizando os servidores que contrariarem disposição legal.

Fernando Leitão é advogado atuante no Direito Ambiental e professor. 

fernando@leitao.adv.br

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