Colunas

Carvalhosa, Abraham Lincoln e o impeachment de Gilmar

6 minutos de leitura
Carvalhosa, Abraham Lincoln e o impeachment de Gilmar
(Foto: Divulgação)

O jurista Modesto Carvalhosa deu nesse domingo uma aula sobre os fundamentos do Estado de direito para os opinadores da Jovem Pan Rodrigo Constantino e Vera Magalhães, enquanto comentavam sobre as manifestações de rua.

A compreensão rasa do que seja democracia, direito civil e até sobre o papel das instituições sociais ficou patente quando Constantino e Vera se propuseram a fazer perguntas ao jurista. Ouvindo aqui no meu celularzinho e andando pelas ruelas da cidade medieval onde moro, não pude deixar de gargalhar em público. Espero que a “jumentice” desses comentadores não me acrescente à minha fama de brasileira excêntrica que já corre por aqui.

Constantino começa criticando a posição do professor sobre o impeachment de Gilmar. “Você não se preocupa com o perigo desta mentalidade da população que pensa que o Supremo deve segui-la? O Supremo não tem que ser blindado da vontade da maioria? Ou seja, operar fora da pressão do que quer a maioria?”

O que está por trás da pergunta é uma ideia legitimamente conservadora de democracia. Uma democracia institucional não pode ser o mesmo que uma mob-cracia, ou ditadura da maioria, compreensão que protege, por exemplo, as instituições americanas. Quem escreve constantemente sobre o tema é o pensador conservador americano George Will.

Will, em sua tese de PhD em ciência política pela universidade de Princeton, nos EUA, escreveu sobre o que se chama em inglês do “reach of the majority”, ou a necessidade de limites na participação e no voto da maioria nas instituições democráticas.

Para discutir o assunto, Will se refere a um momento histórico que decidiu a vida civil americana, o famoso debate Lincoln x Douglas.  Em 1858, o assunto da escravidão estava no auge de seu debate, os ânimos acirrados e os políticos, incluindo Lincoln, procuravam solução, temendo pela dissolução do país. Como uma possível maneira de resolver o problema, o senador Stephen Douglas, do partido Democrata, propôs uma legislação que permitiria aos então territórios de Kansas e Nebraska votarem na questão da escravidão.

No caso, a União não iria impor nenhuma direção: a questão seria decidida pelos habitantes do Estado, através do voto. Abraham Lincoln, que já havia servido dois termos como congressista, travava com Douglas uma briga pelo controle do Congresso e se opunha veementemente a essa posição.

A proposta de Douglas, para muitos políticos brasileiros, pode parecer a mais “democrática”. O princípio em que ele fundamentou seu argumento é conhecido como o princípio da soberania popular. O poder vem do povo, ou seja, a legitimidade de qualquer governo só se estabelece na vontade do povo.  Nas palavras de Ben Franklin:  os servos são governantes e os governantes os servos.

Até aí tudo certo. Os mais empapelados vão saber que Locke, Hobbes e até Rousseau trabalharam com este princípio. O erro de Douglas foi aplicá-lo a um tema completamente imoral, como a escravidão.

A posição de Lincoln sustentava o Wiltmo Proviso, que obrigava a União a banir a escravidão do território adquirido na guerra contra o México. Este foi o estopim da guerra civil.  Lincoln perdeu, Douglas se reelegeu senador. Lincoln compilou os debates e publicou-os em um livro que se tornou popular e, dois anos mais tarde, ajudou-o a se eleger presidente. Logo depois de sua posse, a sangrenta guerra civil começou. A firme posição anti-escravocrata de Lincoln foi um dos elementos que levou o país à guerra. Por que, então, ele é amado por tantos até hoje?

Porque ele entendeu o espírito que fazia da América, a América: um espírito superior ao princípio de proteção às instituições democráticas. Lincoln sabia que a igualdade entre os seres humanos, sistema nervoso central da Constituição americana e da declaração de independência, não podia ser posta a voto.

 “Nossa defesa está na preservação do espírito que valoriza a liberdade como uma herança de todos os homens, em todas as terras, em todos os lugares. Destrua esse espírito e você plantou as sementes do despotismo em torno de suas próprias portas”. (Discurso em Edwardsville, Illinois, 11 de setembro de 1858)

É por isso que os países sérios tem constituições escritas. A Constituição deve estar acima das emoções e modismos do momento, acima dos senadores e congressistas, acima do presidente.  A Constituição está acima dos ministros do Supremo. A democracia, como praticada no ocidente, não é simplesmente o governo da maioria, mas o respeito aos princípios morais, de ordem e conduta do povo e de seus governantes refletidos na sua Constituição. Não apenas em sua letra, mas em seu espírito.

Constantino demonstrou entender apenas superficialmente o problema da ditadura da maioria. Confuso, ele pensa que a tradução desse princípio hoje seria a defesa do Supremo. Existem princípios superiores à massa, sim, mas algumas vezes, como é o caso aqui, quem está defendendo esses princípios é o próprio povo.

O Supremo brasileiro tem agido de acordo a resguardar as instituições nacionais? Carvalhosa responde brilhantemente com um redundante NÃO. Esses vergonhosos ministros do Supremo, na maioria de seus julgamentos, têm agido a agredir, emporcalhar, destruir o tecido frágil da Lei e da Ordem brasileira.

O princípio de Lincoln não se aplica neste caso. Pelo contrário, foi em busca do respeito à ordem constitucional, ou até podemos dizer, pelo respeito mais básico às crianças de nosso país, que o povo foi para as ruas pedir o impeachment de Gilmar. As instituições não existem para proteger canalhas que usam sua posição como déspotas, anulando processos, acumulando provas ilegais contra todos, protegendo amigos, soltando quem querem, enfim, tornando todo o processo de justiça no Brasil refém de seu caráter sórdido.

Carvalhosa responde a Constantino com o brilho de alguém que, como Abraão Lincoln, entende o que é a verdadeira democracia.

“Esta gente está completamente contra a legitimidade constitucional outorgada pelo povo. Eles não são eleitos, mas têm que trabalhar a favor da sociedade. A sociedade age de maneira virtuosa ao propor o impeachment… O Supremo é uma instituição marginal, odiada pelo povo brasileiro como instituição e que quebra todas as regras do estado democrático de direito no Brasil, semanalmente…”

Use este espaço apenas para a comunicação de erros




Como você se sentiu com essa matéria?
Indignado
0
Indignado
Indiferente
0
Indiferente
Feliz
0
Feliz
Surpreso
0
Surpreso
Triste
0
Triste
Inspirado
0
Inspirado

Principais Manchetes