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Tão longe e tão perto: as vítimas do terrorismo em Vila Bela da Santíssima Trindade

Família e amigos acreditam que acusados foram alvo de injustiça

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Tão longe e tão perto: as vítimas do terrorismo em Vila Bela da Santíssima Trindade
Adrie El Kadre é tia dos acusados de terrorismo e acredita em perseguição (Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

As únicas coisas que a maioria dos amigos e colegas de trabalho sabiam sobre a religião de Valdir Pereira da Rocha e Leonid El Kadri de Melo era que a reza no final do dia era obrigatória e que não era permitido comer carne de porco. De resto, eles eram como qualquer outro cidadão da cidade.

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Por esse motivo, a população de Vila Bela da Santíssima Trindade (520 km de Cuiabá) ainda não entende o que aconteceu. Ambos foram acusados de terrorismo em 2016. Naquele ano, aconteciam as Olimpíadas no Brasil e os moradores ouviam falar desse tipo de crime apenas na televisão.

Este mês, a equipe do LIVRE esteve na cidade e falou com pessoas que conviveram com os dois. Eles mostraram-se chocados com a brutal morte de Valdir na cadeia do Capão Grande, em Várzea Grande (Região Metropolitana de Cuiabá) e com a decisão da Justiça em atribuir a Leonid a liderança do grupo extremista.

Valdir Pereira da Rocha brincando com o filho em uma festa da família (Arquivo da família)

A tia de Leonid, Adrie El Kadrie, conta que ambos eram amigos desde muito jovens e tiveram contato com a religião muçulmana por meio do pai dela, Mohamed El Kadri, já falecido.

Mohamed, que era libanês, se casou com uma mulher católica, porém sempre manteve as diretrizes e compromissos da religião. Era conhecido na cidade e, como as pessoas não sabiam pronunciar seu nome, logo ganhou o apelido de “Turco” ou “Rigo” (por conta de uma camiseta de um político que costumava usar).

“Eles sempre acompanharam meu pai e o respeitavam. Aprenderam a se comportar como manda a religião. Sinto muita falta deles vindo aqui em casa e perguntando se eu precisava de algo”, relata.

Adrie afirma ainda que os sobrinhos (porque ela considerava Valdir como tal) sempre foram trabalhadores, do tipo que aceitavam qualquer serviço braçal para poder sustentar a família.

“A diferença entre os dois está no fato de Leonid ser mais reservado. Sempre foi assim, desde criança. Já Valdir conversava mais”, conta.

Leonid é o único dos suspeitos ainda em regime fechado no presídio federal de Campo Grande (Arquivo da Família)

A família da esposa de Valdir não quis falar com a reportagem. Argumentou que nada o trará de volta. Também justificaram que, toda vez que falam sobre o assunto, revivem o sofrimento.

Conforme a sogra dele, ele era uma marido atencioso e um “paizão”, que deixou muita saudade.

Já a esposa de Leonid, faleceu. O filho deles está sob os cuidados da mãe dele, em Campo Grande (MS).

Como chegaram em Vila Bela

A mãe de Leonid, a advogada Zaine El Kadri, conta que os dois foram acusados de envolvimento com roubo, furto e um homicídio – crimes não comprovados, segundo Zaine – , em Gurupi, no Tocantins.

“Leonid trabalhava. Ele chegou em Vila Bela em março de 2008 – e trabalhou de abril de 2008 a setembro de 2011 na Construtora Rodrigues de Freitas”, disse Zaine, mostrando documento que comprova o emprego.

“Ele foi julgado e condenado politicamente, porque não estava envolvido nos crimes”, diz Zaine. “Fizeram um acordo com o juiz, para livrar o meu irmão, que foi absolvido”.

Segundo ela, tratava-se do roubo da camionete de uma juíza de outra comarca, ocorrido supostamente no posto de combustíveis do prefeito de Fátima (Tocantins). Um frentista do posto teria reconhecido Leonid e Valdir.

“Depois, um rapaz foi morto em outro lugar e os dois foram acusados desse crime também”.

Os dois acabaram presos, mas conseguiram o indulto para sair da prisão e foram para Vila Bela da Santíssima Trindade, onde tinham parentes.

“Nós conseguimos que eles cumprissem a pena em Vila, porque seria melhor para eles. E assim foi feito. Contratamos um advogado que tratou de tudo”, explica.

Neste período, a diretora da Cadeia Pública de Vila Bela era Carliane Farias de Brito.

Carlene de Brito assegura que ambos tinham boa conduta dentro da cadeia pública (Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

Segundo a então agente, ambos tinham bom comportamento. A diferença era que Valdir era mais amistoso, enquanto Leonid estava sempre fechado e falava apenas com o irmão.

“Valdir era confiável e logo teve o benefício de se tornar ‘cela livre’, ou seja, passou a trabalhar na cadeia, levando alimentos aos presos, limpando o pátio e colocando as roupas no varal”, explica Carlene.

Depois de passar a cumprir a pena em liberdade, Valdir continuou a ser visto na cidade, já que foi empregado como frentista no posto de gasolina e, depois, passou a motorista do mercado, onde fazia entregas.

“Sentimos muito a morte dele. Eu mesmo fui lá falar com a família no dia da morte e todos estavam muito abalados. Ele era muito atencioso com todos”, afirma.

Com relação à religião, a ex-diretora da cadeia disse que não houve problemas. Ele apenas se isolava na hora da oração, no final de dia, e não comia nada que vinha de porco.

Vida social

Enquanto Leonid era mais reservado e fazia trabalhos no ambiente rural, Valdir tinha uma vida mais urbana. Ele formou um grupo que fazia manobras com motocicletas chamado “Alta Rotação”, o que o tornou popular.

A paixão por motos logo trouxe uma nova oportunidade: trabalhar na oficina da cidade. Vanessa Andrade trabalhou na mesma empresa e afirma que nunca viu nenhum comportamento fora do normal ou extremista.

Valdir Pereira da Rocha durante uma apresentação do grupo “Alta Rotação”. (Arquivo da família)

“Essas coisas de religião eles, puxaram do ‘Seo Rigo’. O povo dizia que ele tinha um Alcorão em casa e tudo, mas eram tranquilos”, conta a atendente.

Na loja, Valdir atendia bem os clientes, era educado e disciplinado. Na época da prisão, estava empregado no local e seria recebido novamente, se não tivesse acabado morto na penitenciária antes.

A família

Após sair da prisão, Valdir conheceu a esposa, teve dois filhos e, em seguida, ela passou no concurso para agente prisional. Por trabalhar em regime de plantões, parte do compromisso com as crianças foi assumida por ele.

Segundo Rosângela Camilo Batista, era comum vê-lo levando as crianças para a babá ou ao médico. Ele também sempre estava passeando com os meninos na praça da cidade.

Valdir Pereira da Rocha e os filhos na praça da cidade durante um passeio (Arquivo da família)

“Era sempre um paizão e sonhava poder construir uma casa para família, porque morava de aluguel. Trabalhava para isto”, lembra.

O sonho de Valdir foi realizado com ajuda dos presos da cadeia pública de Vila Rica, mas só após a morte dele.

O atual diretor da unidade, Edvan Lopes Coelho, conta que foi solicitada à Justiça autorização para usar a mão-de-obra dos detentos na construção. O juiz autorizou.

“Nós ficamos até comovidos com a decisão, porque ele argumentou sobre a situação da família, diante da morte do pai. Fizemos a parte estrutural, ficou faltando só o acabamento”, relata orgulhoso.

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