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Pesquisadora denuncia vandalismo em gruta com inscrições do povo “wauja”, em Paranatinga

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Pesquisadora denuncia vandalismo em gruta com inscrições do povo “wauja”, em Paranatinga
A história da gruta tem relação com princípios éticos e morais transmitidos aos mais jovens. Foto de 2015. Crédito: Vilson de Jesus

Durante expedição entre os dias 10 e 19 de setembro, indígenas e pesquisadores se depararam com gravuras rupestres da Gruta de Kamukuwaká, em Paranatinga (MT), inteiramente “apagadas”. Todas as evidências apontam para um ato premeditado de vandalismo, pois há sinais de que ferramentas foram utilizadas durante o procedimento. O conhecimento tradicional do povo wauja está diretamente relacionado com a gruta, que também é associada à origem da vida e do mundo, portanto a importância do sítio arqueológico é imensurável.

Na tentativa de estabelecer um parâmetro desta perda, Emiliene Ireland, pesquisadora em Antropologia Cultural e Folclore, explica que “a degradação de sítios como Kamukuwaká seria conceptualmente equivalente à profanação da Basílica do Santo Sepulcro, em Jerusalém, e à destruição de todos os exemplares da Bíblia, em simultâneo, ou seja, à eliminação do testemunho, do veículo e, consequentemente, da mensagem”.

As narrativas sagradas, transmitidas oralmente aos mais jovens, estabelecem conexão entre a história da gruta e a origem do dia e da noite, dos seres humanos, dos animais, da criação de utensílios, da medicina, de técnicas tradicionais de subsistência e manejo da floresta, e das próprias regras morais e de conduta social, assim como importantes rituais que se estendem a todos os povos do Alto Xingu e que aconteceram no local durante várias gerações. “Estão nos tirando as narrativas históricas. É por isso que os jovens não as conhecem mais, porque eles não vão ver a casa de Kamukuwaká”, lamenta Arauta, ancião e liderança wauja.

Kamukuwaká, que não por acaso batiza a gruta, é o nome do herói mítico responsável, segundo a crença local, por trazer aos povos xinguanos o conhecimento ancestral que fundamenta seus valores éticos e morais. Ele teria sido o primeiro guerreiro local e defendeu seu povo dos ataques de seu poderoso inimigo Kamo (o Sol), que tinha inveja da beleza do povo Kamukuwaká. Com a ajuda de pássaros que abriram um buraco no teto de sua casa, transformada em pedra por Kamo, ele escapou para o céu, onde aprendeu e transmitiu os ensinamentos sagrados que norteiam a conduta destes povos. Neste contexto, a gruta seria a casa atemporal desta entidade extra-humana chamada Kamukuwaká.

PM aponta que possivelmente foram usadas ferramentas

Depredação cultural 

A gruta, situada às margens do rio Tamitatoala, é considerada sagrada por 11 etnias do Xingu e foi tombada em 2010 como Patrimônio Cultural da União. No entanto, apesar do reconhecido valor histórico, antropológico e arqueológico, as gravuras rupestres do principal painel foram simplesmente “apagadas”. Durante vistoria para avaliar os danos, a Polícia Militar atestou que alguma ferramenta foi usada para apaga-las da rocha, o que configuraria um ato intencional.

Após constatar o estrago, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) fez uma denúncia ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal. No entanto, enquanto novas informações e laudos não forem disponibilizados, não é possível mensurar os danos causados, e tampouco apontar os possíveis responsáveis pelo ato de vandalismo.

A grande maioria das gravuras danificadas retratavam animais. Segundo a crença local, “as representações de animais, peixes e partes íntimas femininas geram vida e provêm abundância”, pontua Emiliene Ireland, e acrescenta que toda a simbologia das gravuras depredadas é fundamental para o equilíbrio social nas aldeias. Afinal, a perda de espaços de reprodução cultural atinge sobretudo os mais jovens, que, privados de sabedorias e competências elementares à subsistência coletiva na floresta, contribuem com aceleradas mutações culturais no interior das aldeias ou se agregam às massas desenraizadas nas cidades.

“Os motivos representados nas gravuras rupestres estão na base de um sistema gráfico regional reproduzido nos corpos pintados e no artesanato tradicional. Motivos estes que, em conjunto com as narrativas sagradas que os explicam, consubstanciam o sistema ancestral de transmissão de conhecimento e reprodução cultural”, complementa a arqueóloga Patricia Rodrigues, especialista da cultura Wauja e doutoranda em antropologia na Universidade de Notre Dame, nos EUA.

Quando o painel ainda estava intacto. Crédito: Vilson de Jesus

Depredação ambiental 

É possível, no entanto, que uma parte das gravuras ainda estejam intactas pois estão cobertas por areia, uma vez que estão assoreados este e outros trechos do rio Tamitatoala, um dos principais afluentes do rio Xingu, fonte de peixe e de vida para uma população ribeirinha que, de acordo com levantamento do Instituto Socioambiental (ISA), soma mais de 27 mil pessoas. O assoreamento é o acúmulo de terra ou areia no fundo dos rios e, dentre outras razões, é causado pelo desmatamento de suas cabeceiras e das matas ciliares que compõem suas margens.

Além do assoreamento, arqueólogas e membros das fundações inglesas sem fins lucrativos Factum Foundation e People’s Palace Projects, que estiveram presentes na expedição, afirmam ser “alarmante a crescente erosão das paredes e o acúmulo de sedimento na gruta”.

Embora seja um patrimônio tombado, a Gruta Kamukuwaká se situa no interior de uma propriedade privada, portanto fora do Território Indígena do Xingu, o que explica tamanho desleixo. No local, segundo relato indígenas, é cada vez mais frequente o acúmulo de lixo oriundo de pessoas que vão até lá para praticar pesca predatória ou se banhar nas cachoeiras.

“Nosso rio está quase morto. Ele é o nosso mercado, onde buscamos o peixe para nos alimentar. Aqui havia muito peixe, mas agora, por causa do desmatamento e dos pescadores, o peixe não fica mais aqui. Kamukuwaká está machucado. Somos nós, Wauja, que o podemos salvar. Nós vamos voltar pra cá, montamos aldeia e cuidamos de Kamukuwaká e do rio”, pontua Akari Waurá, historiador e liderança Wauja, caso os seus lugares sagrados não sejam alvo de medidas efetivas de proteção.

Foto de 2015, antes da depredação

Zona de conforto 

Se a paisagem sagrada abrigou a família de Kamukuwaká durante o conflito com o poderoso Kamo, agora o sítio arqueológico é palco de novos conflitos. Acontece que, desde a delimitação da Terra Indígena Batovi, em 1997, os Wauja têm reivindicado a proteção e o direito ao usufruto de seus espaços de perambulação atemporais que abrangem toda a extensão do rio Tamitatoala, isto é, aqueles que se localizam fora do território indígena, como é o caso da gruta.

Entretanto, apesar da luta na tentativa de sensibilização pública e dos órgãos governamentais responsáveis, o sítio vem sendo ameaçado não só pela depredação decorrente da pesca predatória, assoreamento, poluição e o recente ato de vandalismo, mas também por alguns projetos de empreendimento, como o da rodovia BR-242/MT e o da Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (FICO), cujas rotas geográficas e econômicas esbarram nas causas ambientais e culturais da gruta. Sobre o impasse, lideranças xinguanas ressaltam que não pretendem expandir o território indígena, tampouco impedir o avanço civilizatório do homem branco, apenas pedem a conservação das cabeceiras de seus rios, preservação das matas ciliares, condições de vida da fauna e flora ribeirinha e, obviamente, respeito pelos seus lugares sagrados ancestrais.

Crédito: Jean Nunes

Gruta em 3D

A expedição que constatou a depredação faz parte de um projeto que visa resguardar a gruta de eventos como o ocorrido. A iniciativa resulta de uma parceria entre as fundações Factum Foundation e People’s Palace Projects; a Associação Indígena Tulukai (Povo Wauja); e uma equipe voluntária de arqueólogas de Mato Grosso e prevê o registro do patrimônio histórico usando tecnologias de imagens 3D em alta resolução, incluindo escaneamento a laser e fotogrametria. Os dados armazenados na expedição serão utilizados como base para uma possível “restauração digital” da gruta, que utilizará modelagem 3D para restabelecer as partes das gravuras que foram vandalizadas. Como parte do projeto, uma reprodução do patrimônio depredado será exibida na Bienal de Veneza em 2019.    

(Com assessoria)

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