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O day after

O enorme impacto da Pandemia nos níveis humano, social e econômico vai nos acompanhar durante muito tempo

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O day after
(Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

Parece hoje evidente que estamos a atingir o ápice da pandemia do COVID19 em muitas regiões do mundo. Não será o fim, mas o princípio do fim da mesma. Estamos todos juntos a viver um momento único na história da humanidade e sentimos isso de forma aguda pessoalmente.

O último almoço ou jantar num restaurante que tivemos com um amigo, familiar ou colega de trabalho, por exemplo, parece ter acontecido há uma década atrás e no entanto passaram apenas algumas semanas.

O enorme impacto da Pandemia nos níveis humano, social e econômico vai nos acompanhar durante muito tempo e em direções que hoje não conseguimos prever de forma clara.

Por outro lado, história só é inevitável e linear nos livros. Muitas vezes esquecemos que ela depende sobretudo das escolhas que fazemos coletivamente em cada momento.

Em vez de procurar tentar prever que mundo teremos no pós COVID19, procurei organizar o que acho que vão ser algumas das fraturas mais importantes que vamos ter pela frente e com consequências profundas no desenvolvimento econômico e organização das sociedades. Estas fraturas são comuns a quase todas as nações, democráticas ou não e desenvolvidas ou emergentes.

Mercado vs Estado

Na relação entre Estado e Mercado, os últimos 100 anos tiveram vários momentos chave pelo mundo inteiro. O “New Deal” no pós crise de 1929, todo o movimento de criação do Estado Social após a II Guerra Mundial e a eleição de Reagan e Thatcher nos anos 80 e toda a liberalização econômica que se seguiu. Nesta relação histórica, a crise financeira de 2008 acabou por não ser um evento assim tão transformacional.

Sim, o Estado interveio para salvar o setor financeiro, mas do ponto de vista intelectual não houve alteração nos ganhadores do debate econômico pré crise. Agora, na Pandemia do COVID19 estamos, contudo, num novo momento de inflexão.

Para combater a doença, a economia da maior parte do planeta teve de ser colocada em coma assistida e o consenso geral, da esquerda à direita, foi que os governos tinham de intervir de forma excepcional para ajudar a mitigar os efeitos dessa paralisia. Mas se o consenso hoje é geral, adivinho que o debate pós crise vai ser feroz e o novo equilíbrio que se atingir vai ser bem diferente do pré COVID19.

Saber se os impostos vão subir ou não após a crise acaba por ser o menos relevante desta discussão (sim, parece-me inevitável que vão subir). Na verdade, vão estar em cima da mesa muitos assuntos que já vêm sendo debatidos desde a crise de 2008, sobretudo que desigualdade social as economias conseguem suportar (e atenção que esse debate não é exclusivo das democracias) e que novas políticas públicas são necessárias para a economia do século XXI.

Todo o corpo destas políticas desde a II Guerra Mundial foram criadas em cima de uma base social constituída por uma classe média empregue na indústria e serviços mas com emprego fixo. Isso nada tem a ver com a realidade dos nossos dias e já não tinha há muitos anos conforme podemos ver nas enormes dificuldades que todos os Governos têm, inclusive o Brasileiro, em fazer chegar a ajuda aos órfãos da nova economia.

O mundo da economia da cintura industrial do ABC Paulista é muito diferente do novo universo da economia dos aplicativos. Vai existir, pois, uma imensa pressão para refundação do velho contrato social em novas bases, inclusive tecnológicas . Por outro lado, a DR dos diferentes Governos vai parecer horrenda no pós pandemia e isso vai obrigar os Estados também a começar a olhar de forma diferente para o seu balanço patrimonial e em formas de o monetizar.

Por exemplo, a internet foi criada pelo Departamento de Defesa norte-americano mas royalties por essa investigação de base nunca foram pagos apesar de todos os ganhos trilionários em cima desta invenção e fracamente capturados pela taxação normal. Suspeito que o debate pós pandemia vai entrar por searas bem novas em termos de política econômica.

Globalização vs (Des) Globalização

Podemos olhar para este tema de duas formas distintas e para ambas conseguimos encontrar fortes argumentos. Para uns a pandemia do COVID19 representa o fim da globalização conforme a conhecemos até hoje, com o regresso a uma lógica nacional de muitas indústrias consideradas críticas e de diversas cadeias de insumos.

Um regresso coberto de glória dessa grande invenção humana que é o Estado nação cavalgando em cima de tendências políticas que já vinham crescendo antes da pandemia. Podemos por outro lado, olhar esta questão de forma distinta e afirmar que esta crise representa o pico dessa mesma agenda nacionalista.

Em grande medida, muitas das dificuldades no combate à pandemia têm a sua origem não no excesso de globalização, mas na falta de adequação da governança na resposta a problemas globais como fica bem exemplificado na verdadeira selva que se transformou a compra de equipamentos médicos como respiradores.

Neste sentido, o COVID19 pode ser apenas um “trailer” de outro desafio com implicações planetárias que é o aquecimento global e as suas consequências. O próprio momento de glória do Estado Nação esconde fragilidades no seu seio, como podemos ver sobretudo em Estados federados como Estados Unidos e Brasil, nas tensões entre poderes federais e estaduais. Procurar também melhorar a redundância de certas cadeias de insumos por exemplo não necessita necessariamente de por em causa todo o edifício da globalização.

Parece-me claro, no entanto, que a escolha entre globalizar e desglobalizar vai estar como nunca nas mãos dos eleitores nos próximos ciclos políticos a começar nas eleições dos EUA em Novembro e nas ilações políticas que forem feitas no pós crise. Talvez vejamos um culminar de um realinhamento político muito forte em torno deste tema da globalização que já vinha sendo discutido antes da pandemia, não entre esquerda e direita, mas entre uma visão globalizada e uma visão nacionalista do mundo.

Cidades vs Interior

Os grandes ganhadores do mundo globalizado dos últimos 40 anos foram os que eu chamaria de hiper-cidades. Ao contrário da economia industrial da primeira metade do século XX onde o desenvolvimento dos diferentes países se espalhava por diferentes centros urbanos de pequena e média dimensão , a economia conectada e de serviços do final do século XX e século XXI foi-se concentrando em muito menos áreas.

As hiper-cidades como São Paulo entre tantas outras pelo planeta inteiro. Estas metrópoles globalizadas e conectadas passaram a concentrar em si muitos recursos, a começar pelos humanos, num ciclo retroalimentado com inúmeras implicações inclusive políticas.

Basta olhar para o mapa do Brexit e da eleição em 2016 de Trump para ver como as visões políticas de centros urbanos e do interior dos mesmos países podem ser tão distintas. A pandemia do COVID19 pode ser um momento de inflexão desta tendência. Ao ser uma doença que se alimenta da proximidade social, ela atinge em cheio uma das grandes fortalezas das hiper-cidades.

Por outro lado, a própria resposta tecnológica à pandemia torna menos relevante a proximidade física proporcionada por essas mesmas grandes metrópoles.

O custo da deslocalização tem a tendência a decrescer. Se acrescentarmos ao COVID19, todo o crescente problema do aquecimento global que também atinge estas grandes metrópoles já que tantas destas estão próximas ou do mar ou de cursos de água relevantes, podemos assistir ao início de uma nova geografia do desenvolvimento econômico. E isso terá implicações profundas nas nossas sociedades.

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