Nas paisagens do interior de Mato Grosso, o verde do pasto e das lavouras se mistura ao branco acinzentado das incontáveis cabeças de gado. Trata-se do maior rebanho do país, com 30,2 milhões de cabeças. Muitas, no entanto, não são alcançáveis pelos olhos humanos – existem apenas no papel. É o chamado “boi fantasma”.

 

O golpe é usado tanto para a lavagem de dinheiro quanto por pequenos produtores que querem demonstrar maior renda para obter crédito bancário.

Além da perda na arrecadação de impostos, a distorção traz riscos sanitários devido ao trânsito de animais não cadastrados. Doenças como a aftosa, altamente contagiosas, podem afetar o rebanho, fechar mercados e trazer prejuízos para toda a cadeia da carne.

Agora, o Estado se prepara para atacar o problema utilizando uma espécie de moratória. Batizada de Campanha de Atualização de Estoque, a medida visa recontar o rebanho, sem sanções aos pecuaristas, e legalizar o gado não declarado. A campanha começou na segunda-feira (1º) e vai até 10 de junho.

 

A origem

O crime acontece devido a brechas no sistema de contagem do gado e à incapacidade de uma checagem rigorosa de um rebanho tão grande num território de dimensões continentais. Em Mato Grosso, o rebanho é contabilizado durante a etapa de vacinação contra a febre aftosa. É quando o pecuarista comunica a imunização do seu plantel ao Instituto de Defesa Agropecuária (Indea-MT). Para isso, precisa apresentar a nota fiscal da compra das vacinas e a relação dos animais imunizados. Sem esse procedimento, o produtor fica impossibilitado de emitir a Guia de Trânsito Animal (GTA). E é com base nestes documentos que o órgão contabiliza o rebanho.

Por se tratar de um ato declaratório, é possível que o produtor compre o número de vacinas que quiser e apresente ao órgão uma nota fiscal que não condiz com o número real do rebanho, juntamente com a declaração do estoque vacinado – o que pode ser feito por meio de um formulário de papel disponível nas unidades do Indea.

Segundo o presidente do Indea, Guilherme Nolasco, a distorção pode existir, pois é impossível checar se há, de fato, 30 milhões de cabeças distribuídas entre as 108 mil propriedades cadastradas no Estado.

“É possível que tenhamos uma distorção tanto para mais, daquele produtor que visa um crédito bancário, ou ainda uma distorção para menos, alguém que esteja camuflando um ativo, pois o boi é uma commodity”, destaca.

No caso daqueles que buscam esquentar dinheiro, o crime é praticado inventando-se o nascimento de bezerros. “O empresário pode inventar que nasceram 5 mil, 10 mil cabeças, o que é humanamente impossível de ser checado”, afirma Nolasco.

Método

O advogado Adriano Bianchini explica que é simples inventar o nascimento ou compra de novas cabeças de gado, basta simular a venda desses animais na hora de declarar o Imposto de Renda – o que, em hipótese, garantiria uma origem legal para o dinheiro vindo de atividades criminosas. Ele afirma que existem casos nas declarações à Receita em que as fêmeas dobraram a produtividade em um ano, e todas, sem exceção, conseguiram parir gêmeos.

O boi fantasma também é chamado de “boi no papel”. É um animal fictício que o sonegador declara junto ao órgão competente para conseguir financiamentos ou para lavar dinheiro. “O proprietário declara junto à Receita Federal que tem um determinado número de cabeças, faz a inscrição no órgão competente, obtém o talonário de notas fiscais, compra vacinas, simula a venda e paga o imposto”, explica um contador que trabalha há três décadas com declarações.

Como as atividades rurais declaram imposto de renda por meio do lucro presumido, os criminosos se aproveitam dos rebanhos fictícios para lavar recursos. “Vamos supor que um produtor declare que obteve uma receita bruta de R$ 3,2 milhões ao ano. Optando pela tributação com base no lucro presumido, ele será cobrado em cima de apenas 20% do lucro obtido. É nessa hora que ele esquenta o dinheiro, faz com que o montante se torne legal”, explica o contador.

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Veja uma simulação:

Dos R$ 3,2 milhões ao ano, o produtor é tributado em cima dos 20% sobre a receita bruta total, o equivalente a R$ 640 mil. Neste cenário o contraventor pagaria de imposto algo em torno de R$ 160 mil. O restante não tributável R$ 2,560 milhões seria o valor “esquentado”. Se o contraventor não tivesse a opção do lucro presumido, ele seria obrigado a declarar por resultado, o que onera a carga tributária em mais de 400%. Neste cenário, o imposto a ser pago passaria de R$ 160 mil para mais de R$ 800 mil, o que tornaria a atividade menos vantajosa para a lavagem de dinheiro.

A Associação dos Criadores de Mato Grosso (Acrimat) diz que não é possível mensurar o alcance do crime. “Não sabemos quanto existe e onde acontece”, afirma o presidente, Marco Túlio Soares.

Multa mais pesada
Para fazer frente ao crime, a nova lei de defesa sanitária animal de Mato Grosso (Lei nº 10.486/2016) criou multas mais pesadas, mexendo no bolso do sonegador.

Na lei anterior, existia uma multa fixa para diferença de estoque de pouco mais de R$ 9 mil. “Era pesada para o pequeno produtor, que às vezes tinha uma distorção de cinco animais e muito branda para um cara que quisesse esquentar muitas cabeças. Dava a oportunidade de legalizar um gado sem origem, vindo da Bolívia ou Pará”, explica o presidente do Indea.

Um caso registrado no segundo semestre do ano passado exemplifica bem a situação descrita acima. Um produtor rural do Norte do estado, solicitou ao instituto a recontagem de estoque. A surpresa veio quando uma equipe do órgão chegou na propriedade: havia 20 mil cabeças não declaradas.

“Não pudemos fazer nada. O produtor já nos notificou com o Darf (imposto) recolhido e com a multa paga. Cerca de dez mil reais para vinte mil cabeças. Ou seja, gastou R$ 0,50 por boi para legalizá-lo. Isso abria margem para distorções no nosso rebanho”.

Hoje a multa para quem não declara é de 1,5 Unidade Padrão Fiscal (UPF) por animal, algo em torno de R$ 195. Com a nova legislação, esse mesmo produtor teria que desembolsar quase R$ 4 milhões para se regularizar. “Essa é principal medida para combater esse tipo de crime, mexer no bolso do produtor e fechar cada vez mais o cerco”, finaliza.

Rafaella Zanol/Gcom-MT

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Fiscalização

Na página do Ministério Público Federal (MPF), a informação é de que isso ocorre em razão do pouco controle e fiscalização do Estado em relação à atividade. Entretanto, Nolasco se defende. Explica que 3,8% dos estabelecimentos são auditados pelo órgão ao ano. O número é quase do dobro do recomendado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) 2%. “Também fiscalizamos aqueles casos que identificamos uma distorção grande no estoque de um ano para outro”, ressalta.

Já nos casos em que o produtor declara um rebanho fictício, muitos são pegos em outras campanhas de vacinação, como da brucelose, por exemplo, onde só as fêmeas são vacinadas. “Às vezes ele esquece dessa campanha, não apresenta a nota da vacina e com isso fica em débito com o órgão. É nessa hora que descobrimos uma possível fraude”, detalha.

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