Todo mundo conhece a escritora Clarice Lispector como expoente do movimento feminista que surgia no Brasil na década de 1950. O que pouco se sabe é que a escritora ajudou a escrever frases como: “As empregadas domésticas são um festival de incompetência que as patroas têm que domesticar e às vezes domar como um bicho bravo”.
O trecho em questão faz parte do livro “A aventura de ser dona-de-casa”, escrito por Tania Lispector Kaufmann com o apoio de sua irmã, a escritora pós-modernista pernambucana. A pesquisadora Maria Luísa Jimenez usou os escritos das irmãs Lispector para mostrar como o tratamento aplicado às empregadas mudou muito pouco desde o Período Colonial.
Jimenez é autora da dissertação de mestrado “Domésticas: cotidianos na comensalidade”, desenvolvida pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea (Ecco-UFMT). No trabalho, ela entrevistou cerca de 30 empregadas domésticas e 12 patroas do município de Chapada dos Guimarães (60 km de Cuiabá). Para mostrar a evolução da relação entre estas mulheres de diferentes classes sociais, a autora infiltrou-se em blogs de patroas onde o mesmo tratamento dos manuais foi encontrado.
Numa destas plataformas, intitulada “Corporativismo Feminino”, com mais de 1,1 mil seguidoras, a mestranda encontrou mulheres que se autodenominavam “corporativetes” e que usavam o espaço para criticar suas funcionárias. Como exemplo de publicações, a autora encontrou uma em que a empregada é chamada de “jumenta” pela patroa.
A percepção da realidade e das relações ficou ainda mais tensa quando Jimenez iniciou as entrevistas. A princípio, utilizando um gravador, patroas e empregadas se intimidaram. Mais tarde, a mestranda adotou as táticas da “sociologia do cotidiano” e as mulheres começaram a se abrir. Com a prática, a pesquisadora deixou de gravar as entrevistas e manteve conversas cordiais, para depois anotar as respostas.
“Nas entrevistas, às vezes eu me sentia como se estivesse no tempo do feudalismo, que eu estudava na escola”, afirmou. “Esse tratamento é algo que vem se arrastando desde a escravidão”, completou.
Jimenez acredita que o resumo desta relação está no cotidiano da comensalidade e que um exemplo disso é o ato de sentar-se a mesa. “Nenhuma das empregadas que entrevistei sentam-se a mesa. Os patrões oferecem, mas elas sabem que não podem se sentar, aprendem com suas mães e com suas avós. Uma das patroas com quem conversei me disse exatamente isso, que não faria sentido este contato à mesa, já que as empregadas não são suas amigas”, relatou.
A experiência na Espanha
Maria Luísa Jimenez, que mora há 10 anos em Mato Grosso, não esconde que escolheu o tema de sua pesquisa depois que viveu a experiência de “limpadora” na Espanha, quando precisou trabalhar para custear o doutorado em antropologia cultural no país europeu. “Este trabalho lá é mais valorizado e não existe o recorte de gênero. O que acontece é que a maioria destes trabalhadores estudam e precisam do serviço para pagar estes custos”, afirmou.
Ao contrário do que viveu na Europa, Jimenez encontrou situações de quase escravidão em Chapada dos Guimarães. Histórias de mulheres como a de *Rosana, que foi levada da casa dos pais na zona rural do município com apenas 12 anos. Uma família de fazendeiros ricos fez a promessa de que a menina seria levada para estudar na cidade e que, em troca, trabalharia na casa.
“Ela trabalhava tanto que não tinha tempo de estudar. A única forma que ela encontrou de sair daquela casa foi se casando, aos 17 anos”, contou Jimenez, que não quis identificar sua entrevistada por motivos éticos.
Pré-venda
O trabalho da pesquisadora foi premiado com um edital nacional e pode ser transformado em livro se alcançar a meta de pré-venda pela editora Letramento, responsável pela publicação. O período de compra vai até o próximo dia 21 de abril e o livro pode ser adquirido no link.