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A Operação Cinderela e o trabalho escravo urbano

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A Operação Cinderela e o trabalho escravo urbano
Divulgação/Diogo Moreira/MáquinaCW/Governo do estado de São Paulo

Carla Reita Faria Leal*
Otavio Luiz Garcia Salles de Carvalho*

 

Historicamente, o trabalho escravo contemporâneo no Brasil é marcado pelo uso da mão de obra jovem e masculina, principalmente nas regiões rurais, em fazendas de criação de animais ou de plantações.

Entretanto, essa realidade tem mudado. Exemplo disso foi a situação constatada pela Operação Cinderela que escancarou a exploração sexual de mulheres transexuais e travestis, aliciadas e advindas de estados das regiões Norte e Nordeste do país para o estado de São Paulo, em especial na cidade de Ribeirão Preto, apontando os reflexos de gênero relacionados a essa forma de trabalho indigno.

Conforme o apurado pelas autoridades, os aliciadores cooptavam jovens mulheres e adolescentes transexuais, principalmente dos estados do Pará e do Maranhão, para se prostituírem, com promessas de adequações em seus corpos ao gênero que se identificavam, além de hospedagem e de alimentação.

De acordo com a investigação e com a colheita de provas, a organização criminosa se utilizava das redes sociais virtuais (como o Facebook, por exemplo) para realizar a abordagem das vítimas, com promessas de procedimentos estéticos e cirúrgicos.

As vítimas tinham conhecimento de que iriam exercer a prostituição, mas desconheciam em que condições isso ocorreria. Os aliciadores obrigavam as vítimas a fazerem suas refeições em um determinado lugar e com preço elevado, ao uso de drogas, além de cobrarem diárias pela casa (inclusive contribuição para a energia elétrica e a água utilizadas), pelo ponto de prostituição e pelas intervenções estéticas, que eram feitas por uma pessoa que aplicava silicone industrial na casa de uma das aliciadoras e sem qualquer tipo de estrutura, colocando a vida das vítimas em risco.

Conforme a investigação apontou, os aliciadores utilizavam-se de violência física, da coação, do cárcere privado e da grave ameaça contra as aliciadas para compeli-las a trabalharem e faturarem uma determinada quantia diária. Se assim não procedessem, eram presas sem alimento e passavam a ser vigiadas pelos capangas da chefia da organização.

Caso houvesse o descumprimento às regras estabelecidas, as vítimas eram submetidas a um “tribunal do crime” que aplicava castigos físicos (com barras de ferro ou madeiras com prego) e poderia até matá-las, caso não pagassem as dívidas que contraíam ilicitamente.

Apesar de a operação Cinderela trazer ao debate público essa nova forma de escravidão contemporânea, existem relatos relativamente antigos de possíveis sujeições de mulheres ao trabalho escravo contemporâneo por meio da exploração sexual, mas poucos casos são denunciados ou até mesmo fiscalizações são realizadas para coibir essa forma de trabalho indigno. Parte disso se deve ao fato de a prostituição, praticada majoritariamente por mulheres, não ser reconhecida socialmente enquanto trabalho, muito embora seja profissão regulamentada.

Somando-se a isso, importa destacar que as mulheres transexuais e transgênero encontram-se em condição de maior vulnerabilidade social, pois, além do medo de serem mortas no país onde se mata mais pessoas trans no mundo, não conseguem acesso ao mercado de trabalho, tanto é que 9 em cada 10 travestis ou transexuais se inserem no ramo da prostituição por falta de outras opções. Lembra-se ainda que também há uma alta rejeição familiar, a qual as expõe às situações de aliciamento e de exploração sexual.

Fica claro que o Estado brasileiro precisa promover uma política nacional de combate a transfobia, assim como necessita capacitar os profissionais da saúde e o próprio Sistema Único de Saúde para que essa estrutura possa acolher essas pessoas, disponibilizando inclusive os procedimentos necessários para que alcancem a satisfação com seus corpos.

Urge também a criação de políticas que incentivem as empresas a contratarem pessoas trans e até mesmo um sistema de cotas em concursos públicos, garantindo trabalho decente a essa parcela da população.

Por fim, a fiscalização do trabalho deve desenvolver ações para o combate da escravidão contemporânea urbana, envolvendo aí aquela que abrange a exploração sexual que foi tratada aqui.

*Carla Reita Faria Leal e Otavio Luiz Garcia Salles de Carvalho são membros do Grupo de Pesquisa sobre Meio Ambiente do Trabalho da UFMT, o GPMAT.

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