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Um mundo sem cemitérios

Não existe povo sem história e não existe história sem a aritmética que nos conta os mortos

6 minutos de leitura
Um mundo sem cemitérios

Trabalho num escritório que fica ao lado de uma catedral em ruínas, construída num penhasco que termina no Mar do Norte. No jardim que cerca a catedral dorme um cemitério sóbrio, com suas lajes de pedra fincadas na grama, exibindo datas, desejos, orações e elogios ligados a nomes de outras eras. A visão é bonita: o mar, as rochas, as ruínas e sobretudo o cemitério.

Caminhar por ali no meio das lajes de pedra é um exercício interessante de mortalidade. Você é levado a pensar naqueles que só existem em sua memória, é convidado a cavar um espaço incômodo na mente para imaginar também a sua própria extinção.

Me pergunto – O que o meu túmulo dirá? “Com saudades do marido e filhos?” Farão assim uma desobrigação lacônica, varrendo para debaixo da mesa com rapidez as memórias do que fui, ou se ocuparão em pensar as palavras perfeitas: “um exemplo de esposa e mãe, cheia da graça do Eterno, jamais te esqueceremos!”?

O fato é que somos feitos para morrer. A morte é a realidade inexorável. Todos nós teremos um encontro com ela em algum momento. Como diz o poeta:

“Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra.”[1]

Mas a reflexão que quero fazer aqui não é sobre a inevitabilidade da morte. Quero refletir  sobre uma das trivialidades do morrer. A mundana consideração do “onde cair morto”.  Na hora H, escolher o que, um cemitério? Um jardim? Um jazigo? Que produto de consumo tiraremos da prateleira do mercado mortuário?

O cemitério histórico ao lado da catedral ajuda a formar a identidade de quem é vivo hoje, como as ruínas e as casas que restaram da época. As crianças uniformizadas das escolas da cidade visitam os túmulos como quem visita a si mesmo.

Fiquei imaginando como será o mundo daqui a mais alguns anos. Cemitérios agora são impopulares e caros. Nos Estados Unidos é dez vezes mais barato ser cremado do que escolher uma “cova que me caiba” nos latifúndios capitalistas da América. Pensar em ser reduzida a meros dois quilos de cinza numa urna made in china, acaba tendo seu apelo prático e financeiro.

Tudo vira cinzas

Cheguei uma vez na casa de uma amiga e lá estava seu marido acocorado em cima da mesa, dentro de urna azulada. “Aí está o Fulano, disse ela, não sei se o quero no quarto comigo, em cima da lareira, ou se o jogo no mar”.

As considerações sobre os restos mortais do Fulano passam rapidamente da morbidez para o humor: “Desde que você não nos sirva na refeição, qualquer lugar serve…”

O Fulano não fez história na vida e não vai fazer depois de morto. As trivialidades de sua vida, as pessoas que o amaram, seus filhos e netos vão ser esquecidos. Estrangeiros não vão meditar sobre sua laje a efemeridade das suas próprias vidas, como eu faço aqui.

O altar do ambientalismo

Além da cremação, outras possibilidades práticas de exterminação rápida começam a surgir.  O “The Guardian”[2]  publicou um artigo que especula se o futuro da indústria mortuária está no processo de  “compostagem humana”.

Uma empresa em Seattle, um dos principais hubs do secularismo americano, automatizou uma maneira de transformar o corpo humano num barril de composto orgânico para ser usado no jardim. A família encomenda, envia seu morto e em poucas semanas ele retorna como um barril de esterco.

O processo não é antinatural. Ao acelerar o processo de decomposição do corpo,  eles produzem  em poucas semanas um “produto” à partir dos restos mortais, que a família do morto pode utilizar sem preocupações. Segundo a reportagem é um processo orgânico e mais amigo do meio ambiente, ao contrário da cremação, que gasta muita energia, ou até o enterro convencional, que também acaba utilizando muito combustível fóssil se considerarmos todo o aparato envolvido.

Incomodou-me o neo-moralismo ambiental da proposta. Usar um corpo humano decomposto para melhorar a qualidade das minhas rosas do quintal ou plantar uma horta,  me causa desconforto. Alguém pode dizer que as plantas dos cemitérios, alguns lindos, floridos, se alimentam também deste “adubo.” Mas será que é a mesma coisa? Na proposta utilitária de Seattle, o corpo e o ser desaparecem no altar do ambientalismo.  O esterco humano celebra as plantas, a natureza a criação não-humana.

O  cemitério dos escoceses do século XVII, que vejo da minha janela, celebra as pessoas que se foram deixando uma marca nas pedras e na história da cidade. Mesmo a menor das lajes me comunica alguma coisa. Elas sussurram: “Existiram aqui pessoas, que viveram de maneira a honrar seus semelhantes, que deixaram saudades, que construíram casas, que escreveram livros, que fizeram filhos para fazerem mais filhos.” As lajes não são frias quando me comunicam história, memória, vida humana.  A sociedade da qual hoje desfruto é produto do que estas pessoas identificadas por elas foram, cada um deles, individual e coletivamente.

Numerar sepulturas e carneiros,
reduzir carnes podres a algarismos,
tal é sem complicados silogismos
A aritmética hedionda dos coveiros[3]

Augusto dos Anjos propõe a inutilidade de tudo, mas aqui eu tenho que discordar do pessimismo niilista do poeta. Observando a poesia do cemitério medieval, tenho que reconhecer que os coveiros d’antão, longe de exercerem uma função meramente mórbida, estavam zelando pelo futuro, porque o passado guarda nosso futuro e nossa identidade. Não existe povo sem história e não existe história sem a aritmética que nos conta os mortos.

Imagine um mundo sem cemitérios, onde as cinzas de todos são jogadas ao vento. Parece-me parece que será um mundo oco, transparente. Um mundo de autômatos iguais, repetindo histórias espalhadas ao vento.

Visitaremos cidades sem passado, sem história, sem mortos. Flutuaremos no ar como uma bolha de sabão efêmera, sem marcas nas lajes do passado. Não teremos belos jardins sobre quem foram nossos mortos. O cheiro das flores não nos lembrará da vida diante da morte.

Seremos uma sociedade sem memória, sem lembrança, sem alma – vivendo a suprema utopia do eterno-novo.

_______________________

[1] Psicologia de um Vencido, em: Eu e Outras Poesias, de Augusto dos Anjos, publicado inicialmente me 1912

[2] https://www.theguardian.com/society/2020/feb/16/human-composting-could-be-the-future-of-deathcare

[3] Versos a um Coveiro, Eu e Outras Poesias

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