Tendo terminado a graduação, decidi fazer pesquisa em Astrofísica e em 1971 me transferi para o ITA, onde existia o único curso de pós-graduação em Astronomia no Brasil na época. Meu orientador, Sylvio Ferraz Mello, me propôs um problema que surgia. Algumas estrelas anãs vermelhas (que hoje entraram em moda por nelas terem sido encontrados planetas, alguns ditos habitáveis) estavam mostrando variações luminosas periódicas de pequena amplitude.

Ora, em Astrofísica para explicar variações luminosas periódicas temos poucas opções. Ou a variação vem de pulsação estelar ou envolvendo algum tipo de rotação. O pequeno telescópio do ITA era adequado para investigar isso. Fizemos uma lista de estrelas anãs vermelhas, brilhantes o suficiente para o telescópio e descobrimos algumas estrelas com variações luminosas. Todas pareciam ter a mesma característica das outras poucas já conhecidas — emissão na primeira linha da série de Balmer do hidrogênio.

Estudamos particularmente uma, que recebeu o nome de AU Mic (quem dava os nomes, por acordo internacional, era uma comissão de astrônomos soviéticos. É tão esdrúxula a forma de dar os nomes das estrelas chamadas de variáveis que nem vale a pena explicar.).

A variação era parecida com uma senoide deformada com período de 4,86 dias uma amplitude de uns 3% e maior na cor amarela que na vermelha. Não poderia ser uma pulsação, pois os modelos teóricos previam um período de apenas alguns minutos e qualquer efeito vindo de uma eventual duplicidade estelar, por exemplo, eclipses, não provocariam nem a forma senoidal nem o comportamento das cores observadas.
Desenvolvemos um modelo de manchas, análogas às solares, mas muito maiores.

Funcionou. Atribuímos o maior tamanho das manchas à rotação bem mais rápida (no Sol são quase 30 dias) e à própria constituição das estrelas (sua enorme capa convectiva enquanto no Sol é pequena, mas vamos deixar assim). Isso foi minha tese de mestrado em 1972. O artigo publicado, em 1973, tem mais de 100 citações! E houve um caso de plágio, com bastante erros, denunciado na época. O plágio tem mais citações. Coisas da vida científica.

O próximo passo estava em procurar pela atividade dessas estrelas que deveria ser grande. Na sua tese de mestrado, Ivo Busko, usando telescópios de Cerro Tololo, no Chile, mostrou que essas estrelas eram de fato muito ativas, de tal forma que cerca de 1% da luminosidade saía na forma de fulgurações, análogas às solares mas muito mais frequentes e energéticas (as anãs vermelhas costumam ser assim, bem inconvenientes para a vida em seus planetas). Um astrônomo americano que acompanhava nossos progressos descobriu que uma delas, V1005 Ori, era rica em lítio.

Ora, o lítio é facilmente destruído em estrelas com capa convectiva, que leva o material da sua atmosfera até as quentes regiões centrais, onde é gradualmente eliminado por reações nucleares todo o lítio da estrela. Nesse tipo de estrela, que já não se esperava poder ter rotações tão elevadas, não poderia muito menos ter lítio. Como poderia ser?

Fizemos observações espectroscópicas em Tololo e uma delas, a nossa AU Mic, tinha também um pouco de lítio. Tínhamos selecionado em 1972 outras estrelas com linhas de emissão. Uma delas deu uma rotação ainda maior e uma atividade espantosa. Mas não conseguíamos obter um espectro pois era fraca para a tecnologia da época. A estrela recebeu o nome de V4046 Sgr.

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Em 1980 foi instalado o maior telescópio do Brasil, no Pico dos Dias (OPD), em Brazópolis (MG). Passamos a ter acesso fácil a instrumento maior mas faltavam detectores modernos. Quando instalado o primeiro fomos direto tomar espectros de V4046 Sgr. Se revelou uma estrela muito rica em lítio, com forte emissão na linha do hidrogênio e, surpresa, com linhas espectrais duplas, formando o que os astrônomos chamam de binária espectroscópica.

Foi fácil achar seu período 1,7 dias, o mais rápido até então encontrado. Tinha todas as indicações para ser uma estrela muito jovem, mas longe de qualquer região de formação estelar conhecida. Fizemos uma lista com outras anãs vermelhas ricas em lítio longe de regiões de formação estelar.

Começamos a suspeitar de que existiriam estrelas jovens isoladas, não formadas nas nuvens ricas em estrelas nascendo, como a grande nuvem do Órion. Como provar? Como procurar por mais casos além dos cinco ou seis que reunimos? O grupo era então formado além de mim, por Germano Quast (participante desde a época do ITA) e de Ramiro de la Reza, do Observatório Nacional (ON).

Nessa época, o Instituto Astronômico e Geofísico da USP (IAG) começou a fazer cursos de inverno num hotel dentro do parque do Itatiaia. Numa fria manhã reunimos para um café com Jacques Lépine, do IAG, entusiasmados pela apresentação sobre a tese de mestrado de sua estudante Jane Gregório-Hetem.

Queríamos mais detalhes. Ela tinha mostrado que as cores infravermelhas das estrelas jovens, detectadas pelo satélite IRAS, eram especiais. Iríamos, depois, aprender que isso vinha da emissão do disco protoplanetário que se formava em torno dessas estrelas. Mas o que nos entusiasmava no momento era que talvez tivéssemos a ferramenta que precisávamos para encontrar as estrelas jovens isoladas.

Seria possível fazer uma lista com fontes IRAS com aquelas características em todo o céu? Nascia assim um grupo de procura de estrela jovens que faria um programa intitulado PDS (Pico dos Dias survey). Fizemos um pedido à comissão de programas do OPD que nos deu 3 noites para testar a ideia. Foram 3 noites de nuvens em abril de 1989. Nos poucos intervalos entre nuvens descobrimos 3 estrelas jovens.

Tínhamos um programa! Jane faria então a nossa famosa lista, onde utilizamos um trabalho mais completo feito pelo americano Weintraub (sic) e batizamos as candidatas, para efeito interno, com a sigla IW (IRAS Weintraub). Quando publicadas as estrelas recebiam o nome PDS.

Descobrimos muitas estrelas jovens, mas inesperadamente a maioria das jovens eram mais quentes e haviam poucas dessas estrelas conhecidas até então. Outra descoberta do PDS foram estrelas gigantes (portando velhas) ricas em lítio. E até descobrimos um quasar, o mais brilhante do Universo Local, PDS 456.

O PDS gerou diretamente 4 teses de doutorado e ainda é bem citado. Muito sucesso, menos um: não ficou claro se existiam as tais estrelas jovens isoladas. De fato as primeiras encontradas estavam próximas de uma candidata na nossa lista, TW Hya, formando o grupo de 5 estrelas, que passou a ser chamado de Associação de TW Hya (muitas outras foram depois descobertas), muito jovem, com apenas cerca de 10 milhões de anos.

Não havia nuvens nem próximas da associação! Tinha mais do dobro da idade das estrelas das nuvens. Estavamos achando algo novo, mas não eram isoladas. As outras estrelas jovens frias encontradas estavam quase todas na periferia de regiões de formação estelar. As jovens quentes estavam muito mais distantes para se ter certeza sobre a localização mas a maioria parecia estar associada a alguma nuvem. Será que existiriam mesmo as isoladas?

Aí aconteceu nova mudança de rumo. O ON alugou um telescópio no observatório de La Silla, no Chile, do Observatório Europeu (ESO). Licio da Silva, colaborador em alguns projetos, mas que não pertencia ao grupo original do PDS, se tornou o astrônomo brasileiro residente para esse telescópio, me fez uma pergunta curiosa – que estrelas ele poderia observar em agosto? É uma época do ano que a Via Láctea quase não está no céu e ele tinha muito tempo de telescópio em agosto.

Pensei na história de TW Hya e supus que talvez o mesmo pudesse se repetir em torno de PDS 1, uma rara estrela jovem isolada do PDS e que era observável em agosto. Teria também um grupo em sua volta? Não poderíamos procurar por estrela através da emissão infravermelha, pois já tínhamos feito isso no PDS. Lembrei-me de um novo satélite, o ROSAT, que mapeou o céu em raios-X, medindo, pois, fontes bem quentes.

Como as estrelas jovens são muito ativas deveriam ter corôas bem mais fortes que a do Sol, forte emissora em raios X. Selecionei alvos do ROSAT nessa região do céu e, de fato, encontramos algumas estrelas jovens. Reanalisando a PDS 1 constatamos com o muito aprendido no PDS, que ela era, na verdade, uma gigante, uma estrela bem velha. A descoberta das novas estrelas jovens tinha sido por sorte!

Aumentamos a área de estudos e descobrimos ainda mais estrelas jovens. Enviamos a descoberta do novo grupo para publicação, mas o referee fez severas criticas. Para demonstrar que a descoberta era real me inspirei nos métodos da pesquisa médica e estabeleci uma espécie de duplo cego – observamos duas outras áreas do céu, escolhidas um ao acaso, evitando onde se sabia poder existir estrelas jovens, e usamos a mesma metodologia da área de PDS 1. Não encontramos nenhuma e o artigo foi aceito com essa modificação.

O artigo teve um bom impacto e, tendo em vista também o PDS, fomos convidados a presentar os resultados numa reunião na Califórnia, no instituto do famoso projeto SETI. Afinal estávamos dando alvos para procura de planetas em formação. Nessa reunião o astrônomo americano Zuckerman apresentou um outro conjunto de estrelas jovens na direção da constelação do Tucano.

As duas, apesar de bem separadas no céu, eram muito semelhantes em todos outros aspectos e chegamos à conclusão de que deveriam ser partes de uma inacreditável imensa associação de estrelas jovens. Zuckerman propôs, e nós aceitamos, chamá-la de Associação de Tuc-Hor, já que a nossa ficava na direção da constelação de Horologium.

Nós já tínhamos indicação de outras associações jovens o que levou um importante astrônomo americano perguntar como descobríamos tantas estrelas jovens e eles no Hemisfério Norte tentavam e não descobriam nada. Respondi brincando que éramos bons. Ele intitulou os resultados como a “conspiração do Hemisfério Sul”.

A reunião nos mostrou que precisávamos de amostra maior, cobrindo todo o céu do Hemisfério Sul, não só para delimitar a associação de Tuc-Hor mas também confirmar as outras indicações. Fizemos uma seleção de alvos de estrelas que emitiam em raios-X, suficientemente brilhantes para terem tido seus movimentos próprios medidos pela satélite TYCHO. Isso permitiria definir uma associação cinemática.

Assim se iniciou o projeto SACY (Search for Associations Containing Young stars). O SACY teve ainda mais impacto que o PDS. O novo grupo foi composto por Germano, Ramiro, Licio e eu mas somado com dois astrônomos do ESO, Claudio Melo, brasileiro, que começava sua brilhante carreira na instituição, e o alemão Michael Sterzik. Eles se apaixonaram pelo SACY.

Nosso primeiro artigo saiu em 2006 e teve grande impacto, já chegando a mais de 500 citações. Nesse artigo, mostramos a metodologia e o catálogo inicial com boa parte do Hemisfério Sul coberta. Isso aliás mostrou que meu duplo cego tinha sido por sorte. Havia estrelas jovens por todo o céu austral.

Também mostramos como se podia chegar a uma associação e como obter uma distância cinemática para as estrelas. Aplicamos para a Associação de beta Pic, publicada antes por nosso sempre rival, Zuckerman e tivemos uma surpresa: tanto AU Mic, como V4046 Sgr e mesmo a anã vermelha rica em lítio, V1005 Ori, pertenciam a Associação de beta Pic.

Quase não sobrou mais estrelas da nossa lista de jovens isoladas. No SACY definimos 9 associações de estrelas jovens embora para algumas o rival Zuckerman também publicou resultados.

Fui convidado a escrever um artigo de revisão das associações jovens para o livro Handbook of Young Stars (saiu em 2008). Expliquei para o editor que não tinha sentido fazer uma revisão de algo que começava a sair e quase tudo do nosso grupo e propus um capítulo contando o status da nossa pesquisa, incluindo os trabalhos de Zuckerman.

O editor aceitou e esse capítulo é hoje muito citado, sendo básico na área. Ainda saem artigos do SACY, mas o grupo está mudando com o tempo. A parte brasileira já se aposentou e novos astrônomos, sobretudo do Chile, foram incorporados ao projeto. Fico envaidecido por ainda fazerem questão de colocar meu nome nos novos artigos.

Hoje a questão das associações tem nova abordagem – o satélite Gaia vem dando posições, velocidades e distâncias com incrível precisão de bilhões de estrelas. Praticamente dispensou as distâncias cinemáticas Seus resultados confirmaram a existência de nossas associações com poucas diferenças.

Foi uma vida de descobertas e nunca arrependi da decisão tomada em 1971. Mas afinal, existem estrelas jovens isoladas? Nem todas estrelas jovens encontradas no PDS e no SACY parecem pertencer às associações jovens ou às nuvens. Seriam as procuradas isoladas, nosso inatingível El Dorado, ou apenas seus dados são de baixa qualidade? A resposta já ficou para novos astrônomos…

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Carlos Alberto Torres é astrônomo e membro do Docentes Pela Liberdade.

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