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Estrada do Sol

Temos compaixão maior de quem sofre sem ter dado motivo a seu sofrimento do que de quem comete erros, grandes ou pequenos, e paga a própria conta no fina

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Estrada do Sol
(Foto: Amanda Sandlin/Unsplash)

Recentemente estive ouvindo “Estrada do Sol”*, do Tom Jobim. As imagens são sensitivas, misturadas, misturáveis às experiências de qualquer um.

A canção inteira é um convite ao passeio: “vamos sair por aí, sem pensar no que foi que sonhei, que chorei, que sofri”.

Vamos deixar claro que o passeio proposto é mais que gastar alguns minutos à espera que o cachorro faça suas necessidades do lado de fora do prédio, ou que pedir um prato “pra filmar” e postar nalgum aplicativo despretensioso. O passeio do Tom é coisa séria: muito mais uma partida definitiva do que um andar em círculos melancólico e derrotista.

Sair por aí, sem pensar em que se sonhou, é ato de gente que não se resigna em lamber as mágoas e os anseios não resolvidos. Se a maioria dos sonhos não se concretiza – pelo menos não como a gente espera –, talvez isso seja mais motivo pra alívio do que pra lamento, porque está pra nascer animal mais capaz de querer o que não presta do que o ser humano. Se o Tom convida a sair por aí e esquecer os sonhos perdidos, é porque eles realmente não valiam tanto a pena.

O choro também não merece memória. Aliás, memória é algo que se escolhe (depois de algum esforço), e não tem senhorinha conselheira que não recomende às suas assistidas passar por cima dos choros. Eles funcionam mais ou menos como os sonhos, mas com sinal contrário: se o sonho é V, o choro é F, e vice-versa.

Essa é a maior prova de que ele também não deve ser levado muito a sério, porque se o sujeito mal sabe escolher uma camiseta na hora de sair de casa, que dirá fazê-lo com um sonho decente. E se o sonho não vale muito, chorar pelo seu desencanto tampouco pode atribuir-se algum trocado.

Já o sofrimento, esse ente líquido e gasoso ao mesmo tempo, que toma a forma de onde quer que se instale e se equaliza em todo recipiente das experiências humanas, esse sim merece crédito; não que Tom Jobim seja capaz de enganar-se nalguma letra de música, mas é que com esse jogador o tratamento é diferente: o sofrimento não se joga pra escanteio, mas se aproveita.

Vindo por um motivo justo ou não, merecido ou não, racional – essa é a mais difícil – ou não, o que importa é que o sofrimento veio para ficar, pois não há gente fina, elegante e sincera neste mundo que não tenha sofrido seu bocado. E ai de quem advogar pelo desperdício de sofrimento: seria um sujeito pouco sustentável.

Temos compaixão maior de quem sofre sem ter dado motivo a seu sofrimento do que de quem comete erros, grandes ou pequenos, e paga a própria conta no final.

Também temos o costume de admirar aquelas pessoas que sofrem e não escancaram suas dores, tomando antes as dores dos outros sobre as costas e se sacrificando por elas. E, seres racionais que somos, sabemos – deveríamos saber –, por um ou outro caminho, que mesmo o sofrimento aparentemente mais despropositado e inútil pode ser aproveitado como tábua de salvação, principalmente se for vivido dessas maneiras heróicas.

Isso tudo o ouvinte atento pode aprender com “Estrada do Sol”, conjugando a letra curta com a melodia precisa e matinal, que, juntas, dispõem o sujeito à contemplação dessas realidades que não se desgastam com o tempo. Porém, é de se tomar cuidado: corre-se o risco de abandonar aquele cara apegado, pessimista e covarde que a gente sempre foi.

* É de manhã/Vem o sol/Mas os pingos da chuva/Que ontem caiu/Ainda estão a brilhar/Ainda estão a dançar/Ao vento alegre
Que me traz esta canção/Quero que você/Me dê a mão/Vamos sair por aí/Sem pensar/No que foi que sonhei/Que chorei, que sofri/Pois a nova manhã/Já me fez esquecer/Me dê a mão/Vamos sair pra ver o sol.

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