“Eu quero carneiros e cabras/ pastando solenes no meu jardim”, diz Casa de Campo, canção de Elis Regina cuja letra espelhou a realidade quando a cantora gaúcha foi morar na serra da Cantareira, a apenas 40 minutos do centro de São Paulo. Num especial memorável, ela cantou chorando a linda música, que pode ser ouvida aqui.

Talvez ela não precisasse contar os animais que levou para o bucólico recanto nem sequer imaginasse que bucólico é palavra vinda do Grego, que fez escala no Latim, de onde chegou ao Português, e não perdeu o antigo significado: boiadeiro, aquele que contempla os bois.

Com tal sentido passou a qualificar a poesia agropastoril, tendo sido registrada por Homero, que viveu entre os Séculos X e IX a.C.: “ele se agitava como um boi a quem os bucólicos tivessem amarrado”. Também o grego Teócrito (Séculos IV e III a.C.) e o romano Virgílio (Século I, a.C.) voltaram ao tema.

Os antigos guardadores de rebanho, mesmo que cantassem e compusessem, como Elis Regina, nada recebiam por isso. Compunham, cantavam e narravam de graça, mas precisavam contar os animais e por isso talvez tenham sido deles os primeiros passos da Humanidade na arte de contar, ainda que anônimos, sem a fama dos três citados.

No fim do dia, dúvidas assaltavam aqueles homens. Será que todos os animais tinham entrado de volta no curral? Todos? Mas quantos?

Nômades, migrando de um lugar para outro em busca de melhores pastagens, precisavam saber se e quantos cordeiros porventura os lobos tinham comido, quantos tinham nascido etc. Para designar e controlar estas realidades, porém, lhes faltava uma ferramenta que se tornaria estratégica para a cultura: os números.

Como o guardador do rebanho resolveu o problema antes dos números? Provavelmente fez tantos cortes no cajado quantos animais pelos quais fosse responsável ou os organizou por cor, tamanho ou idade.

Mais tarde, lavradores, cervejeiros e vinicultores mediram a quantidade de espigas ou frutas, vinho ou cerveja, pelos recipientes: cheio, quase vazio, quase cheio, até um determinado risco ou outra marca fixada na vasilha.

Em outros ofícios, o homem recorreu aos dedos das mãos e a suas divisões em tarso, metatarso e falanges. Outras vezes utilizou outras partes do corpo por medida das coisas com as quais precisava lidar com frequência, entre as quais a passagem dos dias.

Também o destacamento de soldados encarregado de conduzir prisioneiros de um lugar a outro precisava entregar a quem recebia o mesmo número de pessoas por cujo transporte se encarregara.

Os números se faziam necessários também para organizar os víveres e conduzi-los para alimentar determinada quantidade de trabalhadores; para reunir pedras e tijolos utilizados numa construção; para calcular o estoque de grãos nos silos.

Para tudo eram necessários números, cujos sinais predecessores provavelmente eram esculpidos, desenhados ou representados de outra forma ao lado de ícones ou letras, que por sua vez designavam o que se estava contando.

Contar de um a três pode ter sido o primeiro passo, de acordo com os indícios da etimologia, reforçados pelo modo de contar presentes ainda hoje entre zulus e pigmeus, na África, aborígines na Austrália e botocudos no Brasil, para os quais o infinito aparece logo depois do par, no que para nós é o número três.

Um era o macho, dois era a fêmea, três já designaria os outros, muitos, a multidão. No Grego, um lobo, dois lobos e os lobos são expressões marcadas ainda hoje, respectivamente, por “ho lokos”, “to luko” e “hoi lukoi”.

No Latim, tivemos “trans” a indicar novos conjuntos, fossem de pessoas, de coisas ou de distâncias: transalpino, transportar, transferir, transpor, transcrever etc. No Francês, ainda temos “très” significando muito: “très hereux”, muito feliz.

Em representações pictóricas do antigo Egito, encontramos uma curiosa ortografia. Um pássaro é representado sozinho; dois num par, mas, a partir de três, aparece um pássaro apenas com tantos riscos verticais desenhados debaixo da figura quantos sejam o que se queira designar.

A segunda etapa foi chegar ao quatro, e a terceira consistiu em usar também o polegar, a ponto de sistematizar a contagem na mão esquerda, que, somada à direita, num passo um tanto mais complexo, porque a humanidade é majoritariamente destra, chegou ao número dez.

A dúzia pode ter tido como berço o conjunto de dedos acrescentado abstratamente aos dois primeiros, de quatro dedos de cada mão, num tempo em que o polegar servia para agrupá-los conceitualmente.

Nos algarismos romanos antigos, predecessores dos que chegaram até nós, havia tantos riscos desenhados quantos fossem os números de um a nove, tendo dez a forma de X.

Foram observadas também outras formas de representação: conjunto de riscos em três colunas duplas verticais: três e um, três e dois, três e três, para indicar respectivamente o quatro, o cinco e o seis; e três colunas triplas para indicar o sete (três, três e um), o oito (três, três e dois) e o nove (três, três e três).

Caminhar e falar são aptidões naturais, mas contar não. E a humanidade demorou milênios para chegar ao zero, com o qual revolucionou a arte de contar. Até então, o homem usava apenas cálculos para fazer contas. Cálculo veio do Latim calculus, pedrinha.

O zero, que revolucionou profundamente a arte de contar, talvez tenha sido inventado pelos babilônicos, mas chegou ao Ocidente apenas no século XIII, trazido da Índia pelos árabes. Por influência da Igreja, seu nome, sifr ou safira, transcrição do Sânscrito sunya, virou cifra no Latim e mais tarde zephirum, chegando ao Francês zéro, de onde veio para o Português.

O computador irrompeu no milênio passado e mudou tudo. Outro dia voltaremos ao assunto, contando outras contas deste rosário, pois que também para rezar os números se fizeram necessários, de que são exemplos o rosário e o terço.

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