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A rotina da infância perdida

Baseado numa história real

3 minutos de leitura
A rotina da infância perdida
(Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

Cheguei em casa, tinha onze anos de idade. Minhas idéias sobre a vida, o futuro, sobre sexo, eram confusas. Como uma estudante da escola pública via novelas, beijava garotos. Achava que estava abafando. Mas era uma época em que a bordelização cultural não existia.

As cantoras MC-bundalelê dificilmente fariam sucesso, sendo que as vozes que dominavam a MPB eram as de Elis, Betânia, e outras bem diferentes dos gritos orgásticos e descrições glamorosas de estupro coletivo que hoje compõem o cardápio musical da moçada.

Acho que minha geração foi poupada do sabor amargo do desespero existencialista que caracteriza o sexo pós-moderno. Desde uma idade muito tenra, as crianças de hoje sabem tudo, erotizadas pelo tsunami sexual que invadiu nos invadiu.

Os adolescentes não namoram, ficam, com 10, 15, 20 pessoas em cada festa. O romantismo foi substituído pela prática prematura e animal do sexo.

Mas, como ia dizendo, cheguei em casa, para comer o arroz com feijão cozido na panela de ferro de minha mãe. Entrei pelo portão sempre aberto de casa, pelo jardim tomado pelo mato, porque minha mãe, cujo hobby era jardinagem andava sem tempo.

Eu gostava muito da festa que minha irmãzinha mais nova fazia me recebendo em casa todas as tardes. Uma carinha de anjo, cabelinho enrolado e sorriso carinhoso. Ela não parecia ter puxado a veia guerreira das mulheres da família. Era suave e tranquila, brincava sozinha, sina de caçula.

Minha mãe gastava mais tempo com ela do que jamais tivera para gastar comigo, mais velha de todos, mas eu não me importava. Sua beleza era como a de um quadro de Renoir, um brilho plácido que iluminava a vida conturbada de nossa casa.

Entrei, esperava ver minha irmãzinha correndo para me encontrar no portão, mas ela não veio. Ouvi um chorinho e a encontrei no fundo com a vizinha. Mulher simples, lavadeira, a vizinha balbuciava sem coragem uma descrição de uma cena inintendível para mim na época, e quase insuportável quando penso nela hoje.

Minha irmãzinha de quatro anos havia sido forçada a fazer sexo oral com o homem que morava na casa do lado. A vizinha viu, interrompeu, mas era tarde demais. Aquele abusador doente já tinha violentado suas três filhas e não perdoava qualquer menina que passava por lá, por mais tenra que fosse.

Fiquei em silêncio e assim ficou minha maninha por muitos dias, semanas, meses, só babando. Babava muito, minha mãe não entendia o porquê daquela regressão, sendo que ela era tão esperta, precoce para a idade. Babava, agora eu sei, para se livrar do nojo e da dor da agressão que sofreu.

Hoje adulta não tem o brilho que poderia ter. Sofre de um distúrbio mental que a condena a viver sob o efeito de remédios fortes. Minha maninha perdeu a inocência muito cedo.

Não sei como terminar este texto. Gostaria de ser otimista, mas é melhor dizer que milhares de outras crianças passam por isto no Brasil de hoje e milhares de agressores continuam impunes.

Respeito

Prefiro lembrar que afinal existe um Deus a quem todos vamos prestar contas. Sejamos religiosos ou não, o respeito ao outro, e principalmente o respeito à infância não é uma opção.

A Bíblia fala da tarefa cristã de salgar a sociedade crua antes que ela apodreça de vez, e de ser luz nas trevas que a cercam, antes que elas se tornem tão densas que nos apaguem. É bom que saibamos que muitos abusos acontecem dentro da própria igreja.

É bom que fiquemos alertas porque a pedofilia que hoje nos causa horror e revolta, provavelmente dentro de alguns anos vai ser considerada como mais uma opção sexual limpa e justificada como qualquer uma das práticas que povoam nossa sociedade, nossa mídia e imaginações pan-sexuais, cruéis e falaciosamente “chics”.

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*Publicado originalmente na Revista Ultimato

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