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A discriminação e a violência de gênero contra o feminino

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A discriminação e a violência de gênero contra o feminino
Imagem ilustrativa (Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Aterrorizados assistimos, nesses últimos dias, conteúdos de diversos pronunciamentos caracterizadores da violência de gênero contra o feminino.

Mais recentemente, até mesmo um ex-deputado, advogado, presidente de um partido político, emitiu conteúdo, em vídeo distribuído em mídias sociais e no YouTube, no sentido de denegrir a imagem de uma Ministra da mais alta corte do país, dirigindo insultos à condição feminina da Digna Magistrada, com inúmeras expressões que identificam a denominada violência de gênero contra mulheres, visto que dirigida especificamente para atingir à dignidade do feminino.

Pois bem.

Parece uma redundância afirmar que todas as pessoas são igualmente humanas.    No entanto, a aceitação dessa afirmação não é universal. Com base em argumentos de liberdade ou autonomia, democracia, liberdade cultural ou, até mesmo, direito à identidade cultural, hierarquias existenciais são prescritas, com a consequente negação de direitos humanos básicos, fundamentais.

Quais seriam as bases “culturais” desses condicionamentos?

As Nações Unidas definem a violência contra o feminino como “qualquer ato de violência de gênero que resulte ou possa resultar em danos físicos, sexuais, morais ou psicológicos às mulheres/meninas, incluindo ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária de liberdade, seja esta na vida pública ou privada”.[1]

Registros oficiais da Organização Mundial da Saúde indicam que cerca de uma em cada três mulheres em todo o mundo sofreu violência física e/ou sexual de parceiros íntimos ou violência sexual por terceiros em algum momento de suas vidas.  Segundo relatório “Mapa da Violência – Homicídio de Mulheres”, da Organização Intergovernamental Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), citado pela ONU, o Brasil tem a quinta maior taxa de feminicídio do mundo.

A questão necessária e básica é descobrir se a universalidade dos direitos humanos é defensável e, portanto, se a violência de gênero contra mulheres é repreensível em todas as esferas, ou se há permissão para a sua ocorrência ou até mesmo gradação entre atos discriminatórios direcionados contra pessoas, quando reconhecida a condição por um processo histórico de violações.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal alargou o contexto da caracterização do racismo para também indicar possíveis condicionamentos discriminatórios à população LGBTQIA+.[2]

É certo que não somente essa população sofre discriminação. A narrativa descrita em todos os meios de mídia, quanto às declarações discriminatória, em evidente configuração da violência de gênero contra o feminino, dirigida até mesmo contra uma Ministra do Supremo Tribunal Federal, de forma pública e acintosa, foi percebida em todos os campos sociais e relacionais.

De toda a sorte, o feminino sofreu e sofre uma exclusão social que até pouco tempo atrás se encontrava assentada em diplomas normativos. Não bastasse isso, muitos livros justificavam a necessidade da ausência das mulheres dos bancos escolares ou universitários por incapacidade intelectiva. De igual forma, justificava-se quanto à ausência das mulheres na política. A desqualificação do feminino vertia-lhe quase uma ausência de condição humana ou, ainda, prescrevia debilidade, condicionada à menoridade permanente.

A violação dos direitos humanos de mulheres e meninas alcança realidades próximas aquelas vivenciadas pelos afrodescendentes, pela escravidão de suas almas, com condicionamentos de menor potencial intelectivo. Foram necessárias várias medidas, dentre elas, a aprovação de tipos específicos, além de novos ditames públicos à consagração de seus espaços nos meios acadêmicos-universitários e na vida social-relacional-política.

Contudo, sabemos o quanto ainda é necessário avançar.

É fato que a violência de gênero contra o feminino se distingue de outros tipos de violência por sua origem cultural-histórica-social-estrutural. Até pouco tempo via-se inserida em diplomas normativos, forjados pela exclusão, com a hierarquização da existência de homens e mulheres, com a subjugação destas.

A análise não pretende esgotar esse debate, mas distinguir três formas possíveis de compreender a relação entre pessoa e cultura, e a projeção desses entendimentos sobre a extensão universal dos direitos humanos (interculturalismo, liberalismo e comunitarismo).

A desqualificação do feminino tem atingido gerações. Causado inúmeros males à sociedade, quanto ao projeto equidade-justiça. São centenas de ocorrências, em tipos-penais diversos ou ações discriminatórias, que configuram modalidades de violência sexual, abusos, assédios, tráfico internacional para exploração laboral e sexual, casamentos forçados, venda e comercialização de corpos com certificação de virgindades, leilões de adolescentes para exploração sexual, violência doméstica, extirpação do clitóris para retirada do prazer e controle de fidelidade, abortos seletivos para nascimento apenas de filhos homens, descarte dos embriões femininos, casamentos com meninas ainda crianças, coerção sexual, perseguição e exposição da intimidade de mulheres ou meninas (violência moral/extorsão decorrente), violência psicológica, feminicídios etc.

É importante que os setores públicos, nos limites de suas atuações nas estruturas de Poder (Executivo, Legislativo e Judiciário) possam efetivamente concretizar as políticas de Estado, assumidas quando da anuência aos compromissos elencados pela Convenção CEDAW-ONU/1979 e pela Convenção de Belém do Pará-OEA/1994.

Não podemos deixar de considerar que as últimas declarações apresentadas em diversas mídias, são situações vivenciadas historicamente por mulheres e meninas. Não há dúvida que são tão gravosas quanto o racismo. Os feminicídios são amostras dessa realidade drástica. A palavra mata antes da faca, do tiro, da esganadura. Ela incentiva condutas.

A história tem demonstrado que a violência de gênero sofrida pelas mulheres e meninas é um fato universal. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal do Brasil tem assumido as categorias conceituais do interculturalismo, com algumas divagações liberais igualitárias e comunitárias relativas, para enfatizar as dinâmicas presentes em sociedades multiculturais. Isso ficou evidenciado na ADC19, ADI4424 e ADPF779. Defende-se uma acepção Universal dos Direitos Fundamentais, Humanos.

As estatísticas nos dão conta desse terrível mal que faz invisível o sofrimento de mulheres e meninas. Até mesmo Juízas foram assassinadas pelos seus ex-cônjuges. Uma delas, em pleno natal e na frente de suas filhas ainda pequeninas.

A invisibilidade resulta até mesmo em tentativas de se modificar o Código Penal, de 1940 (PL5435/2020), para fins de pressionar e impingir ao feminino uma gravidez decorrente de estupro. A falta de empatia e sensibilidade para se perceber a dor da vítima, de mulheres e meninas, nos leva a questionar se há espaço para se perceber a própria humanidade destas. Eu, certamente, morreria (ou preferiria morrer) diante de uma obrigação como essa. Seria indigno e condicionaria uma vítima a ter permanente lembrança do estuprador, da violência, do estupro.

Não se desconsidera que possa existir pessoas com maior grau de altruísmo para gerar um filho de um estuprador. Mas, impor a condição de super-humana àquela que já sofreu o terror, é muito distante de um tratamento digno. Ao que se vê, estamos frente à ocorrência de tortura ou condicionamento degradante.

Não se pretende esgotar sistematicamente os debates atuais. Em vez disso, pretende-se desvelar e lançar luz sobre o debate quanto à fiel observância das normativas atinentes à igual dignidade entre o masculino e o feminino, com a construção de espaços mais equânimes.

Como Cristã, acredito no “projeto humanidade”.

Tenho diante de meus olhos uma filha e um filho, entrelaçando os passos de um novo amanhã.

Que os horizontes sejam mais nobres.

[1] Organização Mundial da Saúde (OMS). Violência contra as mulheres. Violência de parceiros íntimos e violência sexual contra as mulheres. /Internet/. Washington, DC-EUA: WHO; 2014. Publicado em 18 de maio de 2013. Disponível em: <http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs239/es/>.

[2]  Sobre a questão, ver: Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, de relatoria do ministro Celso de Mello, e do Mandado de Injunção (MI) 4733, relatado pelo ministro Edson Fachin.

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Amini Haddad é Pós-Doutora em Ações Coletivas e Direitos Humanos Sociais pela Universidad Salamanca-Espanha. Doutora em Processo Civil e Efetividade do Direito pela PUC/SP. Doutora em Direitos Humanos, Multiculturalismo e Gênero, pela Universidad Catolica de Santa Fe. Em ambos recebeu nota máxima, louvor e distinção. Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC/RJ. MBA em Poder Judiciário-FGV, com Estágio e Intercâmbio nas Cortes Americanas. Graduada e Laureada pela Universidade Federal de Mato Grosso, com a 1ª Média Geral de toda a Instituição (UFMT). Professora de Cursos de Pós-Graduação. Professora efetiva da FD-UFMT. Autora de dezenas de livros e centenas de artigos, nacionais e estrangeiros, nas temáticas de processo, Constituição, Direitos Humanos e Democracia. É Juíza Auxiliar da Presidência (Ministra Rosa Weber), na gestão nacional das Políticas Judiciárias (CNJ).

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