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Véu, grinalda e um padre: mulheres optam por se casar sozinhas, “liberadas” pelos noivos

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Véu, grinalda e um padre: mulheres optam por se casar sozinhas, “liberadas” pelos noivos
(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Enquanto o dia seguia dentro da normalidade para três futuros maridos – algo como casa, sofá e TV -, para suas mulheres a atmosfera era bem diferente. Cada qual estava imersa em um ritual pessoal e inesquecível. Haviam escolhido uma roupa especial, arrumaram o cabelo e se maquiaram discretamente. Preparavam-se para uma cerimônia singular, pela qual muitas mulheres podem sonhar por uma vida inteira: elas iam se casar. Sim, e os seus noivos ficaram em casa.

As irmãs Wérika e Luciana Carvalho, na companhia de Maria das Graças Ribeiro, subiram sozinhas ao altar, exceto a primeira, que foi conduzida e teve todo tempo a seu lado o filho João Lucas, de 3 anos. Um pequeno número de testemunhas acompanhava a cerimônia com um misto de surpresa e descrença. Há pouco mais de um ano elas estão legalmente casadas segundo os preceitos da Igreja Católica e isso quer dizer que podem comungar, ser madrinhas e catequistas se assim o quiserem.

O sentimento que motivou essa iniciativa surpreendente foi o amor à família e a fé à igreja, somados a um alto nível de civilidade e cumplicidade entre elas e os maridos, que as “liberaram” para o evento, do tipo “quer casar vai, mas eu não vou não”, como relembra Maria das Graças, sobre a resposta do marido depois que ela contou que marcaria a data.

Até então, elas nunca imaginaram que se casariam. A proposta curiosa partiu do padre Osvaldo Scotti, líder da paróquia Nossa Senhora da Guia, que abrange 16 comunidades do entorno do bairro Coxipó, em Cuiabá. Foi ele quem disse que isso era possível e, no caso delas, bastante recomendado. Depois do casamento do trio, mais uma noiva subiu ao altar em abril deste ano e outras duas já estão em preparação. E o pároco conta que já tem casamento de novo no próximo mês.

(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Os casamentos viraram o assunto na comunidade Nossa Senhora da Guia. E claro, entre os amigos e familiares das noivas. “Minha avó não entendeu ainda. Até hoje duvida e diz que nunca ouviu falar sobre isso”, diverte-se Wérika.

Ela conta que já tinha sido batizada e feito a Primeira Eucaristia, mas como precisava batizar o filho, teria que fazer a Crisma. “Por viver com meu marido sem casamento no religioso, já não me sentia à vontade e há muito tempo não comungava mais”.

Além disso, a madrinha também teria que ser crismada. “E queria que fosse a minha, mas ela não havia feito a Primeira Eucaristia e, claro, muito menos a Crisma. Me disseram então, venha aqui no domingo, dia em que o padre Osvaldo estaria. Daí eu e Maria das Graças começamos a fazer a Crisma, mas Luciana não quis neste momento. Quando o padre nos disse que seria possível que ‘regularizássemos’ nossa situação e sugeriu que a gente fizesse o nosso casamento, chamei minha irmã. Disse a ela: ‘vamos casar com a gente?’”, relembra.

Com muita segurança e orientadas pelo padre, as três enfim subiram ao altar. “Foi a primeira vez que comunguei”, conta Luciana. “Mas com a promessa de fazer a Crisma. E assim foi. No domingo passado, recebi mais este sacramento. Foi uma surpresa porque eu nunca esperei por isso. Na verdade, quando eu e meu marido ficamos juntos, as pessoas queriam que a gente se casasse na igreja, mas eu nunca tive essa vontade, porque eu estava, na verdade, chateada por ter ‘atropelado o processo’”, diz. Luciana estava grávida quando se uniu ao marido.  “Se fosse depender dele para casar agora, seria bem difícil, ele não vem não”.

Para casar, tiveram que levar um documento para que os maridos assinassem, dizendo mais ou menos assim, que respeitariam a crença das esposas, que aceitariam que os filhos fossem educados dentro da fé católica e que se amariam e cuidariam um do outro.

Assim como Wérika e Luciana, Maria das Graças já está com o marido há muitos anos, 33 com exatidão. “Poder realizar esse casamento para mim foi libertador. Eu vivia com a consciência pesada. Me lancei naturalmente às orientações do padre porque queria viver minha religião de forma plena”.

Luciana confirma o quão emocionante essa ocasião pode ser. “Mesmo sem ter idealizado isso, para mim foi um dia muito emocionante, chorei. A gente não precisa mais ficar presa ao marido nesses termos, você tem sua vida religiosa e ele tem – ou não tem – a dele. Você não precisa ficar sem comungar por causa disso”, reitera Luciana. “No caso do meu marido, ele até toparia, mas eu precisaria esperá-lo por anos, pois ele teria que fazer primeira comunhão, crisma… ia demorar muito e eu não queria me atrasar. Resta a ele se casar sozinho agora”, sugere.

Um ano depois, vida renovada e consciência tranquila: da esquerda para a direita, Maria das Graças, Wérika, João Lucas e Luciana

Casamento misto

A modalidade conhecida como casamento misto é reconhecida pela Igreja Católica desde o Concílio Vaticano II. Mas, pelo que se vê, bem pouco divulgada. Quem conta isso é o padre argentino de ideias progressistas que está há dois anos à frente da Paróquia Nossa Senhora da Guia. Somente lá os fieis têm visto saltar os números de casamentos. Se antes dois ou três eram realizados em um ano, agora o número corresponde a períodos mensais.

Osvaldo se declara um grande fã do conterrâneo, o papa Francisco, e tem até uma foto-montagem no escritório. O percurso católico é quase o mesmo, já que estudavam ao mesmo tempo, em cidades diferentes e apoiaram a renovação radical da igreja, que ganhou ainda mais visibilidade com o Concílio Vaticano II. “A gente deixa para trás toda cultura medieval e mostra que entre os valores fundamentais da fé, figura a certeza de que Deus é misericordioso, compreensivo, perdoa fácil, é inimigo da violência e expressão do amor perfeito”, declara.

Por mais que seja uma brecha antiga da legislação católica, o primeiro casamento misto entre as comunidades do Coxipó foi realizado somente no ano passado, com essas três mulheres. “Se querem um casal que quer viver junto e é feliz, Cristo tem que ser motivo de unidade. Basta que um respeite o outro. Elas se comprometem a amar seus maridos e eles se comprometem a aceitá-las. Em abril deste ano também houve outro casamento e foi curioso que depois de marcada a data, à ocasião da missa, surgiu um pedido para realizar na mesma oportunidade, um sétimo dia”.

Um entusiasta pela evolução espiritual de seus fieis, o padre ressalta que esta medida visa especialmente, à mulher que há muitos anos está vivendo com a mesma pessoa, evoluir, comungar, sendo que o marido não quer saber de igreja, de fé. Então, a igreja, desde o Vaticano II, estimula o respeito à liberdade religiosa. Então eu sempre digo, ‘a senhora pode casar segundo sua fé e deixa seu marido em paz, não fica atrapalhando a vida dele. O compromisso é pessoal’”.

Confira depoimento do Padre Osvaldo sobre a cerimônia realizada em abril:

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