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Resistência à realocação marca cumprimento de decisão judicial na Valentes de Davi

Equipes da Assistência Social municipal e da Defensoria Pública estadual foram até a casa, mas acolhidos afirmam que não sairão dali

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Resistência à realocação marca cumprimento de decisão judicial na Valentes de Davi
(Ednilson Aguiar/O Livre)

O primeiro dia de cumprimento da decisão judicial que determinou, mais uma vez, a interdição da Casa Valentes de Davi, em Cuiabá, e a realocação dos abrigados foi marcado por resistência dos acolhidos em irem para outro local. O novo lugar é um abrigo preparado pela Prefeitura de Cuiabá, que tem capacidade para 150 pessoas.

Eram oito horas da manhã desta segunda-feira (13), quando dois oficiais de Justiça chegaram ao imóvel no Parque Amperco para cumprirem parte da decisão judicial. Os servidores deveriam fazer o levantamento sobre a condição atual do local, a quantidade de pessoas acolhidas em cada dia.

Os abrigados já sinalizaram, a partir de então, a resistência em sair, alegando que não foram ouvidos quanto ao que acham melhor para si. 

Com a chegada das equipes da Assistência Social e Vigilância Sanitária municipal, junto com a Defensoria Pública estadual, os ânimos ficaram ainda mais exaltados. A Polícia Militar esteve no local, o acionamento não foi prévio porque a decisão judicial dispensou tal apoio, mas a DPE pediu aos militares que se retirassem.

Enquanto isso, os abrigados cantavam louvores evangélicos, andavam de um lado para outro, afirmavam que voltariam para as ruas, caso não pudessem continuar ali. Alguns, inclusive, diziam que retornariam ao mundo do crime e não demonstravam interesse em ouvir as equipes que tentavam realizar o trabalho de sensibilização.

Pastora Fátima tenta argumentar com os oficiais de Justiça que foram cumprir a decisão judicial (Ednilson Aguiar/O Livre)

“Por que não vieram aqui antes para nos ajudar? Querem nos tirar daqui, mas aqui eu tenho a minha casa, as minhas coisas. Por que não arrumar aqui?”, questionou um dos abrigados. “Adequado é aqui dentro, não é em outro lugar não. Vamos para onde, debaixo da ponte? ‘Pra rua?‘”, perguntou um outro rapaz.

Fátima Correa Mendonça, conhecida como pastora Fátima, responsável pela Casa, lamentou a ausência do poder público com algum tipo de auxílio e a decisão de desativação da Valentes de Davi.

“Eles precisam de apoio e para onde vão terão isso? Não, não terão. É complicado demais fazer isso com a gente”, disse em lágrimas. Fátima contou que o acolhimento de moradores de rua, homossexuais e ex-presidiários é realizado há quase 20 anos. “Eu também já estive desse lado, entendo como é, estou sempre aqui com eles, moro aqui com eles”, afirmou. Muitos dos abrigados tratam Fátima como mãe e a chamam assim.

Sem condições de acolhimento

A casa é alvo de uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público e apoiada pela Defensoria Pública do Estado, devido às condições estruturais precárias. Conforme a ação, os abrigados estão em pequenos barracos de madeira e lona, construídos pelos acolhidos, o esgoto corre a céu aberto em alguns pontos, a cozinha não é adequada com as normas sanitárias, entre outras situações.

Na decisão judicial proferida na quarta-feira (8), o juiz Bruno D’Oliveira Marques determinou a realocação dos acolhidos na Casa, a partir de segunda-feira (13). A saída do imóvel é obrigatória, mas o aceite ao acolhimento na unidade municipal, não.

Ministério Público Estadual propôs a ação civil pública para fechar a Casa e teve apoio da Defensoria Pública do Estado no pedido (Ednilson Aguiar/O Livre)

A Defensora Pública, Rosana Monteiro, coordenadora do Grupo de Atuação Estratégica (Gaedic) Pop Rua, frisou que compreende as pessoas que estão resistentes à saída, afinal, é uma mudança de um local já conhecido para uma nova realidade, desconhecida. 

Monteiro pontuou que o trabalho de acolhimento institucional realizado pela Valentes de Davi poderia ser executado, desde que atendesse determinadas normativas. “O que é oferecido aqui é um acolhimento indigno, insalubre, violador dos direitos humanos em muitos aspectos. Só que essas pessoas acolhidas aqui estão tão precarizadas em suas vidas que acham que isso aqui é bom para elas”, disse a defensora pública.

A defensora pública Rosana Monteiro tentou falar com os acolhidos na Casa, mas o grupo não aceita os argumentos para fechamento do imóvel (Ednilson Aguiar/O Livre)

A Secretária Municipal de Assistência Social de Cuiabá, Hellen Ferreira, explicou que o poder público não pode fazer investimentos em território particular. Contudo, afirmou que, em 2017, a responsável pela Casa, pastora Fátima, buscou o Município e foi orientada sobre o que deveria fazer para regularizar a situação da Valentes de Davi, o que deveria ser feito de acordo com o serviço que seria ofertado.

A contrapartida que ficaria a cargo do Município ou Estado, diz respeito aos insumos para manutenção do local. 

A proposta do município

Secretária Hellen Ferreira afirma que o Comitê Intersetorial tem ações de curto, médio e longo prazo para desempenhar com os acolhidos realocados no abrigo da Prefeitura (Ednilson Aguiar/O Livre)

A Justiça determinou a criação de um Comitê Intersetorial, composto por várias instituições, como Prefeitura de Cuiabá, DPE, Ministério Público, secretarias estadual e municipal de Saúde e Cidadania, para realizar as ações necessárias para a desativação da casa e o acolhimento dos abrigados. A Secretária de Assistência Social de Cuiabá frisa ainda que há representantes da pastora Fátima, dentre eles a advogada da responsável pela Casa.

Ferreira rebateu que, ao contrário do que a administração da Casa afirma, o local não tem mais de 300 pessoas abrigadas, mas sim, em torno de 135 pessoas, conforme levantamento feito pelas equipes da Assistência Social. A secretária lembra, inclusive, que ali foi feita uma ação de vacinação contra a covid-19 e o número de abrigados ainda se mantinha nessa média.

“Vamos levá-los para o abrigo, ouvi-los e ver qual a necessidade de cada um para poder atender dentro daquela demanda. Não temos a pretensão de prejudicar ninguém, o que tentamos é oferecer um local onde possam dignificar suas vidas”, disse.

Nenhum interesse na mudança

Apesar de arredios à proposta de saída, alguns dos acolhidos aceitaram ir até o novo abrigo que atuará em parceria com a Prefeitura. Localizada no bairro CPA 3, a Associação Terapêutica e Ambiental Paraíso (ATAP) tem 150 vagas disponíveis.

Porém, mesmo após conhecerem o lugar, os acolhidos se mantiveram irredutíveis.

“Aqui não vai ter como eu trazer as minhas coisas, tenho fogão, cama, vou fazer o que com isso? Não serve para mim”, reclamou Iolanda dos Santos Ribeiro, de 52 anos.

A Associação Terapêutica e Ambiental Paraíso (ATAP) é o local que receberá aqueles que aceitarem acolhimento pelo município (Ednilson Aguiar/O Livre)

O local funciona com a mesma prerrogativa dos abrigos municipais. Portanto, há regras a serem respeitadas como não poder consumir bebida alcoólica lá dentro e horário de entrada e saída.

“Mas nós trabalhamos com eventos e voltamos de madrugada, como vamos fazer, dormir na rua? Não tem como ficar aqui”, disse uma mulher. Um funcionário do local explicou que tudo é conversado, seria possível apresentar a documentação da empresa contratante.

Impasse continua

(Ednilson Aguiar/O Livre)

Muitos dos abrigados ainda permanecem na Casa e têm até dia 21 de junho para sair, conforme a decisão judicial. Segundo a pastora Fátima, alguns já se retiraram e voltaram para as ruas, enquanto há quem sinalizou interesse em ir para o abrigo. 

O trabalho do Comitê será realizado também nesta terça-feira (14) e no começo da próxima semana.

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