Judiciário

“Se sairmos daqui, cairemos nas ruas e voltaremos para as drogas”

Acolhidos na Casa Valentes de Davi temem o futuro se uma decisão judicial proferida há quase três anos for cumprida

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“Se sairmos daqui, cairemos nas ruas e voltaremos para as drogas”
(Foto: Ednilson Aguiar/O Livre )

O portão grande e o muro alto escondem os pequenos barracos que, montados lado a lado, mais parecem um quebra-cabeças. Os cômodos de paredes de madeirite são os quartos de grande parte de cerca dos 400 abrigados na Casa Valentes de Davi, em Cuiabá.

O lugar recebe, principalmente, pessoas em situação de rua e dependentes em entorpecentes. Devido as condições precárias, a Casa é alvo de uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público e apoiada pela Defensoria. O caso ainda segue na Justiça.

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O imbróglio preocupa os abrigados, que convivem com o medo de terem que sair dali, se a decisão judicial for efetivamente cumprida. De acordo com os acolhidos, o principal receio é ir para as ruas novamente e retornar ao vício em drogas.

“Vi a morte de perto”

É assim que Alípio Batista da Rocha Neto, de 35 anos, define os mais de 15 anos que passou nas ruas. As vias e avenidas do CPA eram sua casa a céu aberto.

Para driblar os perigos escondidos na vida ao relento, se entorpecer era a solução. O uso de pasta base era frequente.

“Tinham as brigas, a polícia. É muito perigo na rua”, lembra. Há um ano e oito meses, Alípio está abrigado na Valentes de Davi e diz não ter contato com a droga.

“Virei homem na tora”

Diego Fernandes da Silva, de 31 anos, homossexual, conhece a região do “Zero KM”, em Várzea Grande, como a palma da mão.

Ainda criança percorria as ruas, vendo a prostituição de perto. Durante a juventude, atuou como garoto de programa e se refugiava na pasta base para esquecer as dores e desamores.

Na tentativa de lutar contra o vício, passou por uma casa terapêutica evangélica. Uma experiência traumática, segundo ele. A homossexualidade de Diego era vista como um problema. “Ali virei homem na tora”, comenta indignado.

(Foto: Ednilson Aguiar/O Livre )

O rapaz conta que era vigiado o tempo todo e passava por momentos de constrangimento como, por exemplo, usar outro banheiro e ter os utensílios de cozinha separados. Era como se a orientação sexual fosse uma doença contagiosa.

Em meio a essa luta contra as drogas e contra o preconceito, descobriu a casa Valentes de Davi e encontrou ali o acolhimento que precisava.

“Aqui posso ser como eu quiser”, garante Diego, abrigado há quase 10 anos.

Um ano de paz

365 dias sem contato com a pasta base, sem passar o dia entorpecida ou pensando no que fazer para conseguir a droga. Valia até mesmo oferecer o próprio corpo, pelo mínimo que fosse, do entorpecente.

Agora, Rosana dos Santos, de 41 anos, tem um refúgio, a casa é um dos barracos amontoados no grande quintal do imóvel onde foi instalada a Valentes de Davi.

Ter onde dormir junto do companheiro que encontrou para dividir essa parte da jornada, em segurança, sem passar a noite com um olho aberto e outro fechado é uma outra vitória.

Apesar dos dias contados com prazer e alegria, momentos de tristeza também aparecem nesse meio, trazidos pelo receio de voltar para as ruas, se a Casa for fechada.

(Foto: Ednilson Aguiar/O Livre )

“É preocupante, é o passaporte para o retorno às drogas”, diz preocupada.

“Fui aceita sem questionamento”

O aparelho de monitoramento preso à uma das pernas não tem como passar despercebido. Vivendo nas ruas da Capital, a exposição era ainda maior para A.C.S.R, de 38 anos.

“Eu já paguei o que devia: uma pena por tráfico e outra por roubo. Agora, o que tenho é por conta do rompimento do equipamento”, conta.

A mulher conta que foi ali, na Valentes de Davi, que conseguiu um abrigo e tem seguido em frente, cuidando da vida enquanto cumpre a sua pena.

“Aqui eu tenho o apoio que eu preciso, aqui é meu endereço agora. Se fechar, eu vou para onde?”, questiona a mulher.

Medo do futuro

Há 4 anos, Ricardo Santos Borges, de 32 anos, foi acolhido na Casa. Após vencer o vício em drogas, tem reconstruído a vida aos poucos.

O rapaz sai da Casa todos os dias, ainda de madrugada, para trabalhar. Há alguns meses, conseguiu emprego como auxiliar de serviços gerais.

“Aqui não é igual às outras casas onde, após um período, em que você passa pelo tratamento, normalmente de nove meses, tem que ir para a rua. Podemos continuar aqui, é uma família”, garante.

Inclusive, o açougueiro Gustavo dos Santos Borges, de 24 anos, comemora a recuperação do irmão. “Nossa, ele melhorou 100%”, avalia.

(Foto: Ednilson Aguiar/O Livre )

Ricardo reconhece que a Casa precisa se adequar, mas lembra que ele e muitos outros já passaram por situações ainda mais difíceis. “Já comemos do lixo, dormimos no chão, ao relento, com frio”, enumera.

O auxiliar de serviços gerais se preocupa com o fechamento da casa e o risco de voltar para as drogas, porque não tem lugar para ficar. “É um convite para ser acolhido pelo traficante”, define.

Risco já existente

Para o promotor Alexandre Guedes e o defensor público Luiz Augusto Cavalcanti Brandão que defendem o fechamento da Valentes de Davi, o risco de retornar às drogas já é existente.

Como a Casa é um local que permite o livre trânsito dos abrigados, em tese, eles têm contato com o mundo exterior e com isso, convivem com todos os riscos que existentes fora daqueles muros.

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