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Exceção à regra: há vida depois do vício das drogas

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Exceção à regra: há vida depois do vício das drogas

Ednilson Aguiar/O Livre

Luana Doranty

Luana Doranty, 31 anos: ela venceu o vício às drogas e hoje é um exemplo de coragem e superação

O olhar confiante e o sorriso doce da belíssima mulher negra na foto acima não são, nem de perto, capazes de denunciar o passado de sofrimento, angústia e desesperança vivido por ela há até bem pouco tempo. Mais exatamente, há quatro anos, dois meses e três dias. Se não fosse ela ter a coragem de contar, ninguém saberia ou, olhando para ela, acreditaria. E coragem não falta a Luana Doranty.

Há quatro anos, dois meses e três dias, Luana, hoje com 31 anos, tornou-se uma exceção à regra: ela conseguiu tratamento gratuito para se livrar da dependência das drogas em um Estado em que, todos os meses, faltam aproximadamente R$ 20 milhões para quitar os custos básicos da saúde pública – e hospitais filantrópicos fecham leitos de UTI por falta de repasses governamentais.

Para a sorte de Luana, ao menos algum amparo estatal ainda existia. Hoje, dependentes e seu familiares, além do sofrimento e transtornos gerados pelo vício das drogas em si, vivem a aflição de não saberem a quem recorrer quando se decide dar um basta ao problema.

O único hospital onde é possível ser internado para passar pelo processo de desintoxicação, o Centro Integrado de Assistência Psicossocial Adauto Botelho, em Cuiabá, possui apenas 50 vagas e todas elas são reservadas a homens maiores de 18 anos.

Aos adolescentes e mulheres, como Luana, restam as comunidades terapêuticas, todas particulares. O Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas tem conhecimento da existência de 200 entidades. Estima-se que esse número seja maior, mas o fato é que nenhuma possui cadastro junto ao Governo de Mato Grosso. O argumento é o excesso de burocracia.

Para o Ministério Público Estadual, a questão é outra. A maior parte seria clínica clandestina. Pelo menos dois inquéritos e duas ações civis investigam os mais diversos tipos de irregularidades. Mário Quita, presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas, reconhece: algumas são criadas da noite para o dia por dependentes que controlaram o vício e julgam ser capazes de ajudar outras pessoas dentro de suas próprias casas.

Ele sustenta, entretanto, ser uma realidade necessária. O próprio Poder Judiciário, de acordo com Quita, até cobra uma lista dessas casas. São juízes que querem saber os locais onde há tratamento seguro, para poderem encaminhar as pessoas que precisam desse tipo de auxílio em suas comarcas.

Ednilson Aguiar/O Livre

usuários de drogas do morro da luz

Casarões demolidos em região central: “assepsia”

Quase sempre o problema passa desapercebido. De tempos em tempos, no entanto, operações de “assepsia”, como classifica o major da Polícia Militar Gilcemar Mendes Corrêa, comandante da Companhia que atua no Centro de Cuiabá, trazem a questão à tona.

Por “assepsia” a corporação entende ações como a demolição dos casarões abandonados do Largo do Rosário – também conhecido como Ilha da Banana –, para a passagem do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT). Uma medida que, de acordo com o major, “espalhou” os moradores de rua que viviam ali – em sua maioria usuária de drogas – para outras regiões do Centro Histórico de Cuiabá.

“É uma população invisível, que as pessoas passaram a enxergar, o que aumentou a sensação de insegurança. Quase todos precisam de uma assistência que a Polícia Militar não pode dar. Acontece que a PM acaba sendo o único contato deles com um agente do poder público. Um agente que, quase sempre, só aparece para prender, para reprimir”, admite o major.

13 anos de tratamento
Mas voltemos a Luana. Quem ouve sua voz tranquila custa a acreditar que a jovem negra, mãe de uma menina de nove anos e, hoje, estudante de gradução em Serviço Social foi, um dia, o que se poderia chamar de adolescente rebelde. Sua história com as drogas teve início em 1998. Com 15 anos, ela foi flagrada por um tio saindo de um local no bairro do Porto, em Cuiabá, onde morava, conhecido por todos da região como um ponto de encontro de usuários. “Minha mãe ficou desesperada. Me deu uma surra e minha revolta só se potencializou”, diz.

Procurar ajuda cedo é um dos fatores que aumentam a chance de recuperação do dependente químico. É o que afirma José Vieira, sócio-proprietário da Limiar, uma empresa de Cuiabá especializada em prestar consultoria às famílias que enfrentam o problema.

Foi o que fez a mãe de Luana. No primeiro contato com o Conselho Tutelar, ela foi direcionada ao Núcleo Psicossocial Forense, do Juizado Especial Criminal Unificado de Cuiabá, onde o juiz Mário Kono de Oliveira dava os primeiros passos do que, mais tarde, se consolidaria como o programa Justiça Terapêutica, voltado para prevenção de infrações e crimes cujas raízes são o uso e o abuso de drogas e álcool.

Querer se livrar do vício também está na lista de fatores que, segundo José Vieira, potencializam as chances de recuperação. Luana não queria. “Eu não gostei nem um pouco. Algumas vezes, falei que detestava o Mário Kono por causa disso. Fiquei com raiva da minha mãe e da Justiça”.

Na medida em que o tratamento caminhava, o vício de Luana evoluía. Sua frequência nas reuniões de grupos de apoio como Alcoólicos Anônimos – para onde foi inicialmente encaminhada – era por ela mesma forjada. O acordo era participar de seis reuniões a cada sete dias, ocupando pelo menos três dias da semana com a atividade. Luana cumpria a meta em apenas dois. “Eu manipulava a minha ida”.

Enquanto isso, ela trocava a maconha por cocaína e a cocaína por pasta-base. Durante os 13 anos em que esteve em tratamento, ela se tornou uma das dezenas de pessoas que, segundo o juiz Mário Kono, têm recaídas e voltam ao juizado buscando uma nova oportunidade.

“É muito comum. Às vezes a pessoa passa cinco ou seis meses sem uso e, por um transtorno qualquer que tem na vida, começa tudo de novo. Também encerramos muitos processos por morte”, afirma o juiz.

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Falta de estrutura
O programa Justiça Terapêutica completa 15 anos de existência em 2017. Ao longo desse tempo, técnicas – como as usadas com Luana – foram sendo testadas e aprimoradas, dentro do ciclo encaminhamento para grupos de apoio, casas terapêuticas, internações. Hoje, de acordo com o juiz Mário Kono, nada é decidido sem o parecer de uma equipe médica.

Luana, uma das primeiras assistidas pelo programa, precisou de muitas idas e vindas. Foram sete internações no Adauto Botelho e três passagens por casas terapêuticas, até que ela – quatro anos atrás –, julgou-se apta a voltar para casa e retomar a vida ao lado da mãe e da filha, que nasceu quando Luana ainda usava drogas.

Ednilson Aguiar/O Livre

 juiz Mário Roberto Kono

Juiz Mário Kono: “Estado não oferece alternativa”

Enquanto isso, as políticas de recuperação de dependentes químicos no Estado involuíram, segundo o juiz, “porque o Estado simplesmente não tem oferecido condições para o tratamento”. Em 15 anos do programa Justiça Terapêutica, foram atendidas 15 mil pessoas, que geraram 12 mil processos no Juizado Especial.

Mário Kono afirma que Mato Grosso não possui uma clínica para recuperação de dependentes químicos – nem mesmo particular – e que o Adauto Botelho apenas se assemelha ao que deveria existir. “Tem psiquiatra, médico, enfermeiros, medicação. Mas, ainda assim, trabalha de portão encostado e não trancado”, diz.

Durante um período, o juiz afirma ter sido comum encaminhar dependentes para comunidades terapêuticas. Hoje, segundo ele, sabe-se que elas não são o local mais adequado para alguns casos, por não haver um acompanhamento médico dos pacientes. Um problema que, na avaliação de Kono, poderia ser resolvido sem grande impacto financeiro.

A proposta do juiz é capacitar profissionais que atuam em unidades básicas de saúde para que eles trabalhem em conjunto com as comunidades terapêuticas. A prescrição do medicamento ficaria por conta do médico, mas o controle dos pacientes continuaria ocorrendo nessas comunidades, a exemplo do que, conforme o magistrado, “uma mãe qualquer faz na sua própria casa”.

“O custo não é tão elevado, a meu sentir, mas não estou lá dentro, como gestor, para realmente saber. Quando você tem uma demora de quatro, cinco meses para fazer uma cirurgia no fêmur ou numa clavícula que quebra, você vai se preocupar com o dependente químico? É uma doença, mas, para a maioria das pessoas, é a escória da sociedade, até que aconteça na própria família”, argumenta.

Felipe Martins / O Livre

Unidades de tratamento para dependentes químicos

Força de lei
Desde junho, uma lei municipal criou em Cuiabá uma “política de internação voluntária, involuntária e compulsória” e determinou a instalação de uma unidade de atendimento psicossocial para dependentes químicos na capital.

De autoria do vereador Elizeu Nascimento (PSC), que é policial militar, o projeto foi vetado pelo prefeito Emanuel Pinheiro (PMDB) sob o argumento de vício de iniciativa, por gerar gastos ao município. O veto acabou derrubado pela Câmara Municipal e a lei foi promulgada. Tornar realidade o que está no papel, agora, depende de recursos públicos que, conforme a própria lei, devem ser reservados no orçamento municipal de 2018.

Ednilson Aguiar/O Livre

Vereador Elizeu Nascimento

Vereador Elizeu Nascimento: lei deve sair do papel

A proposta, de acordo com o vereador, é que a unidade municipal de atendimento psicossocial funcione como um ponto de referência onde as famílias poderão, inclusive, solicitar apoio de uma equipe médica para realizar internações involuntárias.

Elizeu espera ainda que os dependentes possam permanecer no local até estarem completamente recuperados – e não apenas durante o processo de desintoxicação, que dura poucos dias e não é garantido contra recaídas.

Segundo a secretária de Saúde de Cuiabá, Elizeth Araújo, ainda em novembro a prefeitura deve lançar as obras de três unidades voltadas ao atendimento de pessoas que sofrem de transtornos mentais ou são dependentes químicas. Duas funcionarão como casas de acolhimento, onde será possível fazer internações.

Elizeth Araújo diz estar também nos planos do Município reformar e ampliar o Centro de Atenção Psicossocial (Caps) Adolescer. Voltada ao atendimento de adolescentes, a unidade deve passar a funcionar 24 horas por dia, segundo a secretária.

“Além disso, estamos nos reunindo para criar um plano de ação integrada emergencial entre Cuiabá, Várzea Grande e Rondonópolis, que são as três maiores cidades do Estado, voltado a essa rede de atendimento às pessoas que têm dependência química”, afirma.

Enquanto isso, segundo José Vieira, da Limiar, a maior parte das famílias demora a buscar ajuda porque simplesmente não sabe a quem recorrer. “Para que número de telefone esse pai ou mãe liga?”, questiona, pontuando não haver divulgação de informação sobre o tema e, muito menos, uma política de prevenção.

“Deveríamos começar por um sistema preventivo. Nós não temos nada. A ação preventiva é o principal eixo. Não é o tratamento e, muito menos, a repressão. Não que estes não sejam necessários, mas se você trabalhar a prevenção, você não chega aos outros estágios ou chega em bem menor número”, defende o juiz Mário Kono.

Felipe Martins / O Livre

Ocorrências relacionadas a drogas em MT

Segurança pública
Quanto ao tratamento, Vieira e Kono concordam em outro ponto: é preciso tirar a pessoa do ambiente em que ela encontrou o vício e oferecer, além de remédios, um “tratamento social”. Em contato diário com quem vive na rua por esse motivo, o major Gilcemar Mendes Corrêa reforça a tese de que não há políticas públicas nesse sentido.

Ednilson Aguiar/O Livre

moradores da ilha da banana

Casa na 12 de Outubro: descaso e transferência

“O pouco da assistência que se oferece é muito desordenado. Essas pessoas sequer são identificadas por um órgão público. Na maioria das vezes, o que é oferecido para eles saírem da rua é pior do que a situação que eles já enfrentam estando nela”, afirma.

Um exemplo, conforme o major, é a casa na Rua 12 de Outubro, no centro de Cuiabá, para onde os antigos ocupantes do Largo do Rosário foram levados quando a demolição dos casarões teve início. No imóvel de três quartos e uma edícula, chegaram a viver 17 pessoas que acabaram transferidas, pouco tempo depois, após um abaixo-assinado de moradores que reclamavam de furtos, invasões, uso de drogas e “bagunça” nos arredores.

O major sustenta que as queixas tinham razão de ser. Já o trabalho da polícia, de acordo com ele, não tem eficácia porque os crimes cometidos por essas pessoas são considerados pequenos. “Na maioria das vezes, o juiz sequer impõe o pagamento de fiança e eles retornam para o mesmo local de antes, quase que imediatamente”.

A secretária de Estado de Trabalho e Assistência Social, Mônica Camolezi, que assumiu o cargo no início de outubro, diz que a primeira “missão” que recebeu foi a de construir, em conjunto com a Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos, uma política estadual de atenção a dependentes químicos.

De acordo com ela, já existe uma minuta de decreto nesse sentido, fruto de estudos já realizados, mas que ainda passará pelas mãos de um grupo de trabalho antes de ser aprovada.

“Existia no Estado os órgãos de atendimento dentro dessa política, que é da saúde, da assistência social e também da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos. Com a reforma da saúde mental, isso passou a ser exclusivamente da saúde e ficamos sem essas pernas institucionalizadas. Isso a gente sentiu no Estado. Há uma deficiência. Agora, nossos técnicos estão construindo o que a política nacional não prevê”, afirma.

Aos atuais usuários de drogas, contar com uma “política” será possivelmente melhor do que contar apenas com a fé e com a sorte, como Luana.

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