Ministério Público e a Defensoria Pública de Mato Grosso são enfáticos quando o assunto é a Comunidade Terapêutica Valentes de Davi, em Cuiabá: “não há condições de funcionamento, não há salubridade alguma. A solução é fechar”.
Para isso, a Promotoria propôs uma ação civil pública pedindo o encerramento das atividades.
A decisão favorável foi proferida pelo juiz Luís Aparecido Bortolussi Júnior, em novembro de 2018. O magistrado determinou que a Comunidade, hoje com o nome alterado para Casa Valentes de Davi, não recebesse mais nenhum interno.
Caso desobedecesse, seria aplicada multa diária de R$ 1 mil por interno encontrado ali. À época, eram 150 pessoas estavam abrigadas no local. Agora, já são em torno de 400.
Bortolussi determinou ainda que a Casa, em conjunto com o Estado e o Município, providenciasse a realocação dos internados para instituições regulares. Se não houvesse cumprimento, seria aplicada outra multa diária.
Resultado? A Valentes de Davi já deve mais de R$ 200 milhões.
A Justiça decidiu ainda que o Poder Público municipal e estadual deveria realizar o cadastramento de todos os abrigados e, “no prazo máximo de 60 dias úteis, oferecer os serviços socioassistenciais especializados”.
Além disso, deveriam ser feitas as avaliações médicas completas sobre o estado de saúde de todos os abrigados, com a disponibilização de tratamento médico quando necessário.
Interdição e acolhimento
A decisão não foi cumprida em sua integralidade. E, apesar do comunicado de interdição, a Casa continuou aberta.
Enquanto isso, mais e mais pessoas passaram a buscar a pastora Fátima Correa Mendonça para receber ajuda. Praticamente todos ali viviam na rua em meio a dependência de entorpecentes.
“Eu não consigo e não vou falar não para essas pessoas”, diz emocionada a mulher, que é chamada de mãe pelos abrigados.
Fátima reconhece que é necessário organizar o espaço para atender às diretrizes de salubridade. Mas sozinha não consegue arcar com tudo. A mão de obra é disponível, mas faltam materiais.
“Pediram para construir um banheiro masculino, fizemos isso. Pediram para fazer uma área para abrigar as frutas e outras comidas, fizemos. Ainda é preciso arrumar a cozinha”, pontua. “Mas eu não tenho dinheiro para fazer tudo o que é preciso. Por que não me ajudam, ao invés de fechar?”, ela questiona.
A Casa se mantém aberta por meio de doações e do trabalho dos próprios abrigados, que vendem sacos de lixo pelas ruas de Cuiabá.
Outra alteração foi no nome do estabelecimento. A antes comunidade terapêutica, agora é Casa. Afinal, não há equipes de especialistas, conforme determinado pela legislação para a denominação de comunidade.
Pouco apoio
Fátima lembra que a Prefeitura de Cuiabá informou que ajudaria a arcar com o aluguel do imóvel onde está a Valentes de Davi hoje. “Foram só alguns meses e, depois, nada mais foi feito”, lamenta a pastora.
No ano passado, assistentes sociais estiveram na Casa e abordaram alguns abrigados, questionando sobre o interesse de saírem dali, terem tratamento médico e até mesmo retornarem para suas cidades natais.
Alguns aceitaram o convite, mas não tiveram um final positivo. É o caso de Edilécio Pereira, 26, que acabou morrendo atropelado na Estrada da Guia, em outubro. “Tiraram ele daqui e foi isso que aconteceu”, comenta Fátima, entristecida.
Por outro lado, neste ano, o governo estadual passou a auxiliar a casa. Foram pelo menos três doações de cestas básicas, realizadas mensalmente.
“A primeira dama Virgínia Mendes esteve aqui e nos ajudou”, conta a pastora. “E são essas ajudas que precisamos”, pede.
Como o MP vê a Casa?
Responsável pela ação civil pública que pede o fechamento da casa, o promotor Alexandre Guedes explica que o casa Valentes de Davi não tem condições de funcionamento. Quer seja no local onde funcionava antes, no bairro Santa Isabel, quanto agora.
“Não tem a mínima condição, as pessoas ficam amontoadas, é até um risco para a saúde coletiva e pública”, argumenta.
Guedes esclarece que a proposta da Promotoria é que a Prefeitura de Cuiabá faça a rede de apoio, senão diretamente, através de albergues. Que contrate o que for necessário para abrigar melhor essas pessoas.
“Qualquer lugar é melhor do que aquele onde estão hoje”, rebate o promotor. “Se o poder público não existe para atender a essas pessoas hipossuficientes, para que ele existe? Temos que ter essa noção”, complementa Guedes.
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O MP frisa que o entendimento de responsabilidade do poder público é tamanho que foi feito o acionamento do Município e do Estado na ação.
“O MP não quer que essas pessoas sejam colocadas na rua, mas sim, que o poder público realoque os abrigados. Ressalto que já estamos há mais de dois anos nesse processo, então, é tempo mais que suficiente para o município ter arrumado essa rede”, cobra o promotor.
Defensoria dividida
O processo e a própria situação são tão complexos que a própria Defensoria Pública atua nos dois pólos da ação, ou seja, pedindo o fechamento e pedindo a manutenção do local aberto.
O defensor público Luiz Augusto Cavalcanti Brandão, coordenador do Grupo de Atuação Estratégica em Direitos Coletivos – População em Situação de Rua (Gaedic Pop Rua) concorda com o MP.
“As condições ali são, no mínimo, insalubres”, avalia. Brandão explana que a maioria das pessoas que vive na casa estão em situação de rua. Portanto, o Gaedic participa da ação em defesa dessas pessoas.
Inclusive, o Grupo adianta que estuda a execução das multas que foram aplicadas. “O descumprimento da decisão é um desrespeito ao Poder Judiciário”.
Por outro lado, Munir Arfox, defensor público que atua em favor da Casa, pontua que não recebeu e não tem recebido as intimações em mãos. Inclusive, isso foi pontuado em um recurso protocolado na Justiça. Afinal, isso dificultou a defesa da Valentes de Davi.
Ademais, Arfox questiona porque apenas a Casa tem sofrido com o peso das cobranças. “E o Estado e o município? Não há como a pastora cumprir sozinha a decisão judicial”, argumenta.
O que diz o Poder Público?
O governo do Estado informou que não se posicionaria neste momento.
Já a Prefeitura de Cuiabá alegou que disponibilizado um imóvel para atender a demanda, mas os acolhidos se rejeitaram a ir para o novo espaço.
A Secretaria de Ordem Pública (Sorp) informou que, na semana passada, recebeu denúncias de vizinhos da Casa Valente de Davi. A reclamação versa sobre à insegurança no bairro.
Na questão de acolhimento dos abrigados, a Prefeitura informou que existem vagas em quatro albergues e os que se interessarem serão acolhidos.
Com relação à oferta de saúde, a gestão municipal lembra que, na Capital, existe o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) AD Adolescer, unidade para tratamento de crianças e adolescentes dependentes de álcool e drogas.
O local é porta aberta e atende crianças e adolescentes de 12 anos a menor de 18 anos. Atualmente são atendidos no local cerca de 400 pessoas.
Estão em fase de implantação no município o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas III e duas Unidades de Acolhimento.
O programa para o combate ao uso do crack, bem como tratamento contra outras drogas, será implantado assim que estas unidades estiverem em funcionamento.