Principal

MT teve governador investigado por corrupção há 220 anos

7 minutos de leitura
MT teve governador investigado por corrupção há 220 anos

Coleção da Casa da Ínsua

Vila Bela

Ouro em barra, em pó e sob a forma de anéis, correntes, medalhas e rosários. Joias adornadas com diamantes, topázios e crisólitas. Jogos de talheres de prata e objetos entalhados em marfim. Enxovais de luxo com peças de tecidos finos, trazidas da Europa.

Quando tomou conhecimento da lista de bens do testamento do ex-governador e capitão general de Mato Grosso, João de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, a rainha de Portugal, D. Maria I, quis saber mais a respeito da origem daquele patrimônio.

Era julho de 1797 e Albuquerque havia morrido no ano anterior, enquanto ainda exercia o cargo na distante e insalubre capital da capitania, Vila Bela da Santíssima Trindade.

Em uma ordem encaminhada a Francisco Lopes de Souza Faria Lima, que então ocupava o cargo de ouvidor geral, a rainha determinou a abertura de uma “devassa”, um inquérito preliminar a respeito das ações do governante.

“Sua majestade ordena que V.Mce. informe sobre os bens que deixou João de Albuquerque (…) e que tirando uma devassa debaixo de todo o segredo a respeito dos motivos porque ele enriqueceu tanto, a remeta a esta Secretaria de Estado para ser presente a mesma Senhora”, dizia o documento.

Começava ali, 214 anos antes da posse de Silval Barbosa, a primeira grande investigação a respeito de possíveis atos de corrupção de um governador em Mato Grosso.

Reprodução/Entrelinhas

João de Albuquerque

Retrato de João de Albuquerque Pereira de Melo e Cáceres: evolução do patrimônio chamou a atenção de Portugal

Um trabalho minucioso, que ouviu dezenas de “delatores” e identificou fortes indícios de irregularidades, mas que, antes mesmo do surgimento da expressão que representa a impunidade no país, terminaria em pizza.

Nascido em Portugal, o alvo havia sido o quinto governador e capitão general da história da capitania. Seu posto fora obtido por indicação de seu irmão e antecessor no cargo, Luiz de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, que esteve no comando por quase 17 anos.

Desembarcou em Vila Bela em outubro de 1789, sendo empossado um mês depois. Já estava doente à ocasião e nunca chegou a se curar por completo. Por isso mesmo, teve um mandato relativamente curto: permaneceu no posto por seis anos até morrer em 28 de fevereiro de 1796.

Reprodução

albuquerque

Ofício assinado por João de Albuquerque durante seu curto mandato: rede de contrabando e sonegação

Se faltou tempo para grandes realizações do ponto de vista administrativo, a descrição dos 610 itens de seu inventário demonstra que o período foi mais do que suficiente para que o governador acumulasse uma considerável, e suspeita, fortuna.

Em razão das dificuldades da viagem entre Lisboa e Vila Bela, que durou quase um ano e teve sua última etapa Amazônia adentro, a partir do Pará, Albuquerque trouxera quase nada consigo.

Tudo o que estava descrito em seu testamento havia sido, portanto, acumulado durante seu governo, em uma evolução incompatível com sua renda declarada como agente público.

Essa listagem de bens, assim como as 319 páginas do relatório da investigação, estão transcritos no livro “Devassa no Guaporé – Usos e Abusos do Poder na Colônia” (Entrelinhas Editora/Fapemat), escrito pelas historiadoras Maria de Fátima Costa e Flávia Kurunczi Domingos. Os originais fazem parte do acervo do Arquivo Histórico Ultramarino de Portugal.

“Os bens deixados pelo ex-governador contavam com uma grande quantidade de ouro em pó, em barras – dos mais diferentes tamanhos – e em folhetas. Além disso, havia ainda ouro em forma de medalhas, bolsinhas, caixilhos, rosários, cordões de várias espessuras, relógios, botões, fivelas, espadins (…) sem contar a enorme variedade de anéis, muitos deles ornados com as mais diferentes pedras”, diz um trecho do livro.

Uma grande quantidade de ouro em pó, em barras – dos mais diferentes tamanhos – e em folhetas. Além disso, havia ainda ouro em forma de medalhas, bolsinhas, caixilhos, rosários…

Artefatos em prata castelhana, jogos de cama luxuosos (de procedências como França, Hamburgo, Bretanha e Portugal), além de estoques de azeite, vinhos, vinagres, manteiga e queijos flamengos também constavam do testamento.

“[O testamento] reúne dados que nos permitem conhecer um pouco melhor a vida fastuosa que os irmãos Albuquerque levaram no interior do Brasil Central”, afirmam as autoras.

Todos os bens sob investigação foram embargados. Ao todo, foram ouvidas 42 testemunhas. Embora muitos aliados do antigo governador tenham se recusado a colaborar, os relatos permitiram ao ouvidor identificar nada menos que 13 práticas ilegais.

A principal delas foi a operação de uma rede clandestina que fazia chegar à região produtos de origem estrangeira sem pagar os direitos de importação. Uma lucrativa operação de contrabando e sonegação lesava os cofres da coroa portuguesa e enchia os bolsos do governador e seus aliados.

Para se desvincular dessas práticas, Albuquerque dispunha de pelo menos três laranjas, que se encarregavam da comercialização. A devassa também identificou que Albuquerque atuava como agiota: concedia empréstimos, utilizava-se de prática violentas de cobrança e até extorsão.

“Percebe-se que o favorecimento, a corrupção e o enriquecimento ilícito foram praticados pelos homens de poder já no início da administração do território que hoje forma o Estado de Mato Grosso”, diz um trecho da apresentação do livro.

Em seu relatório final, encaminhado a Portugal em fevereiro de 1799, o ouvidor lamenta a falta de colaboração de testemunhas importantes, a quem apelidou de “favoritas criaturas” do governador. Mas afirma ter encontrados “indícios veementes” de que o esquema existia.

Se não era mais possível punir o governador, ainda havia tempo para resgatar, em meio ao patrimônio embargado, valores para ressarcir os cofres públicos. Mas essa medida jamais seria adotada.

Em vez disso, quase seis anos após a investigação, o irmão mais novo e herdeiro de Albuquerque, Manuel, foi autorizado pelo Príncipe Regente Dom João a resgatar toda a fortuna deixada pelo ex-governador.

O motivo não poderia ser mais sintomático: o destinatário dos bens havia se casado com a filha de John Forbes-Skellate, general escocês que poucos anos antes liderara os portugueses na chamada batalha do Rossilhão e, por isso mesmo, gozava de grande prestígio na Corte.

“Ou seja, apesar da crise econômica por que passava a capitania de Mato Grosso, o Príncipe Regente Dom João, fazendo uma mercê ao general Forbes, agora sogro de Manuel de Albuquerque, ordena que a lei seja descumprida (…) apesar das muitas provas que o ouvidor conseguiu reunir, a Devassa no Guaporé foi suspensa e arquivada”.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros




Como você se sentiu com essa matéria?
Indignado
0
Indignado
Indiferente
0
Indiferente
Feliz
0
Feliz
Surpreso
0
Surpreso
Triste
0
Triste
Inspirado
0
Inspirado

Principais Manchetes