Já sei. O leitor não conhece a palavra. No dicionário não está mesmo. É uma criação pessoal de um cantor do sertanejo caipira dos anos 1940/1980, chamado Ranchinho. Simplório. Irônico. Cáustico.

Gostava de contar causos. Neles fazia muitas voltas criando galhos na narrativa central. “Vou fazer um devorteio”, explicava. E contava uma passagem paralela dentro da estória principal que ela chamava de “causo”. Possivelmente o criador da sátira política na música brasileira.

Nesta semana estava lendo um caderno sobre “Inteligência Artificial”, publicado dentro do jornal Valor Econômico. Nada a ver. Mas me vi, de repente, lendo sobre os cérebros eletrônicos dos computadores e dos smartphones. Imaginado que eles nos oferecerão diariamente menus de emoções programadas. De sentimentos construídos. De amores cibernéticos. De sexo virtual. De amores digitais.

Sou muito dado a longas reflexões sobre temas assim. E acabei no comparativo. Onde fica o dervorteio do humorista Ranchinho? E o bolo de fubá da vovó? O aroma escandaloso do café quentinho? O beijo roubado no escurinho do cinema? As esperanças juvenis?

Confesso que a nostalgia deu um longo devorteio dentro da minha alma. Quem sou eu, afinal, que convivo com o devorteio e passeio na inteligência artificial?

Resolvi dar um quebra na nostalgia. Entrei no youtube pra ler poesias e escutar músicas. Mas fiz uma parada no devorteio. Vou ouvir músicas do tempo do bolo de fubá da minha avó Alvina. Comecei a partir do Ranchinho nas músicas que ouvi na minha infância no velho rádio “Philips” amarelo que meu pai comprou numa boa safra de café em 1958.

Nasci entre as serras de Minas Gerais. Como não ser introspectivo? Impossível. Construí minha vida entre músicas. Cada fase. Cada fato. Cada virada. Pra cada, uma música. Ou várias. Visitei 1958 e escutei a tristonha Dolores Duran cantando o clássico “A noite do meu bem”. A bela Elizete Cardoso cantando o hino do Herivelto Martins, da década de 1950, “Chão de Estrelas”. Nessa música os versos mais bonitos de todas as canções brasileiras: “A lua furando o nosso zinco salpicava de estrelas o nosso chão. Tu pisavas nos astros distraída sem saber que a alegria dessa vida é a cabrocha , o luar e o violão”.

Corri lá no caipira clássico e escutei a sempre atual “Saudade da minha terra”, composta pelo mineirinho de Coromandel, Goiá, um radialista poeta. Não pude deixar de ouvir o fantástico Nat King Cole cantar “La Golondrina”, a canção-símbolo de todos os exilados do mundo. Eu próprio, um peregrino…

Volto à inteligência artificial. Aos emojis retratando sentimentos digitais.

Imagino os smartphones de amanhã com sua fantástica capacidade de agregarem cérebros universais aos nossos miseráveis cérebros de sentimentos tão humanos.

Fico aqui pensando nessa equação cósmica. Eu humano, apreciador de músicas sentimentais e saudoso do bolo de fubá da minha vó Alvina. Versus eu, os eus cósmicos da linguagem digital.

Juro que preferi ouvir a fantástica Doris Day cantar o simplório sucesso dos anos 1950: “o que será, será”… Resguardo-me nos meus pobres neurônios ansiosos.

Assinatura Coluna Onofre

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