“Vim para esse espaço praticamente sem grana, mais coragem e vontade do que grana. Simplesmente paguei o aluguel da casa, religuei a energia e o pau torou. Não tinha nem ventilador”, conta Valdivino Vilas Boas, ou Cachorrão, como é conhecido o dono da tal caverna de teto fechado por pôsteres de clássicos do rock e do cinema.

Um espaço de expressão cultural viva que, ao longo dos 14 anos, completos neste sábado (26), vêm se reinventando sem perder a essência. “Como a casa é muito antiga, é reforma direto. Vou reformando e apagando da memória, porque se for ficar lembrando de tudo, a gente acaba desistindo”, brinca.

(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Mas os parceiros lembram bem das paredes sem reboque e o piso “no batidão” que caracterizavam aquele caldeirão sempre fervendo ao som do rock. “A gente saia do palco molhado de suor e hoje, se não me engano, até ar condicionado o Dog já colocou lá”, contou o músico Joe Fagundes.

Assim como os antigos Sayonara e Bar do Neurô, o Cavernas Bar é daqueles redutos que já constrói um histórico para ficar na posteridade, resistindo ativamente na cena ou na memória da cidade. E a comparação não tem nada a ver com o perfil dos locais, mas com a expressividade; com pouco mais de uma década, o bar já recebeu nomes internacionais do rock metal e foi palco para a formação de bandas e de público underground em Cuiabá.

(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Vocalista de banda hardcore, trabalhando em bares comerciais de Barra do Garças, Cachorrão abriu o Cavernas no município, em 2001, e o trouxe para a capital, em 2004. Primeiro, ele passou pelo Bairro Lixeira, abrindo as portas na João Gomes Sobrinho, onde ficou por seis meses até se instalar definitivamente na Barão de Melgaço.

Na época, o amigo Joe integrou como baixista a banda de heavy metal, Hellzen, a primeira a tocar nos dois pontos. Ele conta que o show no antigo bar aconteceu com intermédio de Ivan, responsável por realizar o movimento blackout até pouco tempo antes, afinal, Dog ainda estava receoso. “Não topou comigo, topou com ele”, brinca Joe. “A banda não tinha nem nome ainda, foi criada naquele dia”.

No segundo espaço, a apresentação veio a convite do próprio Cachorrão e eles dividiram palco com as bandas Carrascos e Gorempire. Vislumbrando a história, Joe conta que até forjou a sorte para ser novamente a banda anfitriã.

“Ninguém queria abrir o show e eu queria muito tocar primeiro, mas a banda não. Queriam tocar no ápice do show, sei lá, no meio. Falei, cara, então vamos tirar na sorte. Peguei três palitos, deixei um menor, coloquei na mão e quem pegasse o palito menor ia abrir. Como eu tinha colocado os palitos, marquei o menor e puxei primeiro. Os outros caras já fizeram aquela festa e o pessoal da banda ficou puto comigo. Falei, galera, foi na sorte, né?”, se diverte.

Erly Miranda e Lívia Viana

Quando o Cavernas abriu as portas, a cultura alternativa na cidade era mantida por eventos esporádicos. Bandas de rock tocavam na UFMT, o Espaço Cubo se consolidava realizando festivais, mas não havia nenhum bar que recebesse a galera do rock metal, que já realizava eventos na cidade desde os anos 1990.

O bar chega para emplacar um cenário efervescente no segmento em Cuiabá, resultado daquela década que surpreendeu a cena roqueira pelo profissionalismo, em meio à escassez de recursos e as ferramentas de comunicação ainda por nascer. Uma produção cultural essencialmente independente.

“A Márcia e o Marcelo, por exemplo, fazem show na cidade até hoje e já trouxeram bandas do país inteiro com o festival Arte Underground. De rock metal, é o evento mais elaborado em Cuiabá, desde equipamento, escolha das bandas, dos locais. Com recursos próprios, eles sempre bateram esses eventos que a galera fazia com 400 mil reais. Levaram prejuízos de ficar anos pagando, fazem por coragem e vontade”, lembra Cachorrão.

Com o passar das décadas, o Cavernas Bar é o único a manter a pegada underground, resistindo em função da paixão e a militância de Cachorrão pela cultura metaleira, expressa como uma contestação dos valores conservadores das instituições religiosas e do Estado.

“Dog, você tem que pensar que você é o empresário, se não depois quem vai passar fome aqui é você”, alertavam os amigos, como Joe, que considera Cachorrão um herói na cena do rock de Cuiabá.

Mas apesar das dificuldades, ele manteve o bar sempre aberto ao longo dos 14 anos e é categórico quanto a manutenção ideológica do espaço. “O metal que eu dou a vida é altamente ideológico. Eu desprezo o virtuosismo musical. Não é só pegar nos instrumentos e fazer uma música bonitinha cheia de riffs, ideologia está em primeiro lugar”.

A formação de um reduto

“A noite underground de Cuiabá não tinha um endereço fixo, éramos bastante instáveis para fixar uma agenda de eventos e os shows na cidade eram bem menos frequentes. O fato de ter uma casa com a estrutura que o Cavernas oferta – com palco, bar, staff, banheiros, iluminação, etc. – tornou o custo das produções bem mais acessível e isto também é um importante fator para a ampliação das nossas programações”, conta uma das pioneiras na produção cultural do segmento, Márcia Oliveira, citada pelo amigo.

“Em outras palavras, falando especificamente do metal, nós conseguimos fazer muito mais shows do que no passado, fazendo com que Cuiabá entrasse na rota de todas as importantes tours de bandas brasileiras e também de alguns nomes internacionais” complementa. “Eu me recordo que quando produzi meus primeiros shows, era quase uma ‘inquisição’ para saber se uma banda topava ou não fazer um show em Cuiabá”, brinca.

Pergunto a Cachorrão se o bar se mantém com um público fiel e ele responde que, na verdade, gente nova está sempre vindo. “Uns vem algumas vezes e não voltam mais, outros vêm e depois de um tempo aparecem de novo, mas tem um público fiel realmente, que o dia que não vem eu fico preocupado”.

Entre 2005 e 2006, foram ao menos três shows por mês, conquistando a clientela. Nos últimos bons tempos, chegou a fazer de oito a dez shows por mês. Gore, do Peru, Metal Grave, do Chile, além de bandas do Paraguai, Bolívia, México e Dinamarca, foram alguns nomes do metal que fizeram ponte em Cuiabá através do Cavernas. “Vieram dos EUA também, mas bandas de rock que outras pessoas trouxeram”, explica. Para ele, a melhor época foi de 2011 a 2013, quando havia mais disponibilidade de bandas de fora virem.

Além de receber talentos da cena mundial, é um dos principais palcos para formação de bandas locais. Foi onde muita gente estreou, das bandas mais novas àquelas que já nem existem mais. Em meados de 2005, o bar chegou, inclusive, a ter uma formação de banda própria, a Cavernas Rock Band. A ideia era tocar só lá, onde Márcia acredita ser um laboratório onde fervilham ideias.

“É onde sentamos para dialogar com o pessoal mais jovem que está chegando, é onde reencontramos os velhos amigos e ali quase toda reunião se converte em algum acontecimento que vai mobilizar artistas e público do cenário alternativo brasileiro/cuiabano”.

Fotos: Thiago Okde e Erly Miranda

Pluralidade

O Cavernas Bar é fiel a cultural metaleira, mas, como em relacionamentos menos conservadores, as vezes rola uma abertura. Já recebeu atrações locais do MPB, hip-hop, reggae e até eletrônico. “Contra a minha vontade, não sabia bem o que era né, mas rolou”, brinca, mas fala sério: “Tudo que vem da cultura alternativa e underground o Cavernas apoia”.

Em 2008, por exemplo, o bar também foi ocupado pelo projeto Aqui Jazz, durante dois meses. O evento reunia Fidel Fiore, Danilo Bareiro, Sandro Souza, Sidney Duarte, cita Joe. “As feras da música brasileira que estavam tocando lá na época”.

Foto: Ângela Coradini

Márcia ainda ressalta outra peculiaridade desses 14 anos. “A casa sempre foi bastante respeitosa com o que considero ser uma peculiaridade do underground cuiabano. Diferente de outras cidades, aqui, o Metal tem uma convivência muito próxima com os outros estilos de música alternativa e o Cavernas acolheu essa cena plural de forma muito produtiva, viabilizando uma integração que desde muito cedo nos caracterizou”.

E quando dá pau em um evento a galera corre para cá né?, pergunto ao Dog. “Pois é, já rolou algumas dessas, mas eu não gosto mais de fazer isso não, porque eu acabo recebendo o problema junto por camaradagem e quando está rolando o evento é que cai a ficha”.

Arte: Felipe Martins

Não deixe o heavy metal morrer

Apesar de ser referência, Cachorrão lamenta a desvalorização da cena. Para estes próximos anos, a intenção é abrir apenas o bar e reduzir a realização de shows e eventos para cada dois ou três meses. Segundo ele, estes eventos vêm atraindo muito menos público para o bar com a maior variedade de opções na cidade.

“O público que hoje vem ao Cavernas não quer pagar ingresso para ver show, quer vir beber, jogar sinuca, curtir o bar, então eu concluí que é melhor abrir sem show, porque eu tenho menos trabalho, dor de cabeça, despesa e o público sai satisfeito e vem todo dia”, explica. Cachorrão acredita que os shows antes eram bem aceitos como novidade. “Acho que o povo enjoou, exceto quando tem show de tributos especiais, aí o bar lota”. O primeiro foi uma homenagem a Raul Seixas, em 2005.

“Os shows que eu ainda faço questão de fazer é com banda metal, porque isso realmente só o Cavernas que faz, eu e os produtores amigos, porque não tem outro lugar. Mas eu mesmo organizando, cansei”, desabafa. “Nós estamos enterrando essa cultura”, alerta, num apelo, mas conclama a cena com a abertura que adquiriu ao longo de sua trajetória: “Mas o espaço está aí, as bandas que quiserem organizar é só vir”.

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