É manhã de quinta-feira, oito de março, Dia Internacional da Mulher e me preparo para visitar Vó Francisca, benzedeira de 104 anos, nascida e criada na região de Chapada dos Guimarães, conhecida pelo seu dom sobrenatural de cura através das ervas e rezas.

Ao chegar à casa de Francisca, deparo-me com um lugar simples de paredes na cor azul, já desbotadas pelo tempo. Na pequena varanda, um banco de madeira e duas poltronas para acomodar quem chega procurando algum tipo de ajuda. Uma poltrona, com almofadas coloridas, é para aconchegar a Vó, que entre um atendimento e outro se senta para descansar. Ali passa boa parte do dia, benzendo ou simplesmente contando os causos de sua longa jornada.

Logo na entrada, uma placa comunica os visitantes os horários de atendimento, que pela manhã vão das 7h30 até as 10h30, e à tarde das 13h às 17h, apenas em dias de semana.

Apesar de toda sua lucidez, Vó Francisca começa a sentir o reflexo do tempo em seu corpo já cansado. Com apenas 10% da visão, vejo-a pedir ajuda a uma das pessoas que esperam pelo atendimento, para que a guie até o cômodo onde são realizadas as “benzeções”. Com a permissão dela, acompanho as duas até a uma pequena sala, anexa à casa de Vó Francisca.

Como um portal para outra dimensão, adentro a sala que recebe luz natural por uma estreita janela e vejo outro banco de madeira similar ao da varanda e um pequeno sofá, onde me sento.

No altar que se estende por toda sala, vejo dezenas de imagens, santos, orixás, anjos, velas acesas, uma pequena garrafa com ervas e fotos dos entes queridos de Vó Francisca, que já se foram. Entre eles, a de um senhor que presumo ser de seu falecido marido. Não me atrevo a perguntar, pois o rito já se inicia.

A idosa de feição cansada dá lugar a uma senhora de expressão serena, mas de gestos firmes. Sua voz também ganha tom mais grave e embargada. A paciente se senta no banco de madeira enquanto Vó Francisca fica de pé na sua frente.

Ela está de costas para mim e me torno invisível naquele momento. Os raios de luz que entram pela janela contornam Vó Francisca, que sem querer acaba me protegendo do forte sol das 11 horas.

Ao iniciar a reza invocando seus guias espirituais e citando mais de 10 santos, tento reconhecer os nomes, mas é em vão: não consigo acompanhar suas falas de ritmo acelerado.

Entre palavras cantadas e dizeres de cura, ela faz uma pausa para alcançar o frasco com ervas. Sua pouca visão não a impedem de encontrar, através do tato, o que precisa ali naquele altar.

Enquanto a jovem está de olhos fechados e parecendo entrar em transe, Vó Francisca começa a molhar a cabeça de sua paciente com gotas de vela acesa e um líquido que cheira a alfazema, ao mesmo tempo em que faz o sinal da cruz. Ao final, as duas se abraçam e se beijam no rosto, com uma longa risada.

Ficamos sentadas nós três conversando ainda na salinha de rezas. Ao longo de nossa conversa sobre os dias quentes e pacatos em Chapada, algo me chama a atenção: a naturalidade e o jeito brincalhão com que Francisca fala sobre como será sua passagem quando chegar sua hora de partir. Falar sobre morte a todos nós soa de forma carregada e triste. Não para Vó Francisca, que mesmo tendo enterrado quatro de seus doze filhos, além de esposo, pais e irmãos, consegue tratar do assunto com leveza.

“Minha fita do postolar que tá guardada, essa eu vou levar! Se não botarem no meu pescoço, eu vou vir todo dia apertar o pescoço de um! De resto eu nem ligo. Tudo fica pra trás. Minhas fias ficam me oiando, dizendo que eu falo disso de um jeito alegre. Mas eu não sou triste. Eu sou feliz! Com meus 104 anos eu sou alegre” conta rindo, aliás, o riso é sua marca. A cada frase uma pequena risada escapa de Vó Francisca.

Logo em seguida ela pergunta se não iremos tomar café. Outro mimo que ela faz questão de servir as mais de 30 pessoas que passam por lá diariamente.

Já sentadas na varanda ela me conta sobre sua juventude, de quando trabalhava na roça ajudando os pais na lavoura e na agilidade em que selava o cavalo para tocar a boiada. Tudo com muita riqueza de detalhes como se os acontecimentos fossem recentes. “Eu era uma mocinha muito da esperta. Corria pelo pasto montada no cavalo. Panhava as fruita no caminho e ía me embora. Sinto sardade”.

Logo chega uma moradora chapadense se queixando de dores no corpo e não demora muito para que a benzedeira passe a receita de uma garrafada. “Fia, ocê vai pegar Sangra D’água, Jequitibá, Guniada, Para Tudo, Amarra o Leite, e conforme o incômodo também pode por Infalível, Carapiá e nove cravos. Tudo dentro do vinho e deixa curti três dias e depois toma todo dia por um mês”.

Pergunto para que serve e ela me explica que a garrafada é um remédio antigo que aprendeu a fazer ainda menina. Ajuda na anemia, limpa o sangue e cura inflamações.

Com o conhecimento dos remédios naturais e das ervas ela desabafa. “Hoje em dia nois tem que ajunta com os médico. Tem muita doença que eles não descobre na farmácia, nem com todo o estudo. Eu falo dgente, quem é criado do mato e conhece, cuida em casa. Se não melhorar com isso, daí vai no médico. Que eles tão precisando duma mão daqueles que as veis nem são estudado. Como ieu que não tenho estudo de nada, nem de escola. Mas meu estudo é diferente. É das pranta e das raiz”.

Quando questiono se nunca sentiu medo de seu dom e as visões que tem dos espíritos, ela logo lembra de uma situação que viveu de quando ainda era moça.

“Certa vez, fia, um tenebroso baixou num homem. Todo mundo saiu correndo e só ficou ieu. Ele comia fogo e as velas que tava tudo acesa. Se debatia e me olhava com os zóio tudo atravessado parecendo oio de cobra. Eu me concentrei no caboclo arco e flecha. Ele gritava: ‘eu vim beber sangue!’ e expiava pra minha cara. E eu firme oiando pra ele dizia: ‘aqui ocê num vai beber sangue de ninguém’. Dai pediu bebida forte, ieu falei que ali não entrava bebida, que era centro de paz. Depois de muita reza ele disse que queria ir embora e que era pra eu firmar o ponto dele. Antes de partir ele me expiou de novo e perguntou: ‘quem te deu essa força?’ e eu disse: ‘foi Deus’. Firmei o ponto e ele se foi. Se oce num sabe fazer o bem, só sabe fazer o mal, num faz nem um nem otro”, relatou a benzedeira.

Chega a hora de encerrar os atendimentos da manhã e digo a Vó que já estou de partida. Ela mais que depressa e com bom humor insiste para que eu almoce em sua casa. “Armoça, fia, prova da minha comida e vê se já to boa pra casar”, brinca a benzedeira, e aproveita para se queixar por suas filhas não deixarem mais que ela ajude na cozinha devido sua pouca visão.

Agradeço o convite com um longo abraço e muita reverência a aquela ânsia milenar de costumes simples e conselhos sábios.

Antes que eu vá ela me abraça novamente e diz: “fia, quando oce encontrar a maldade no caminho, oce reza, se apega a São Longuinho e Maria vai na frente. Quem corre cansa e quem anda arcança”.

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