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Vitória Basaia: “arte para mim é sobrevivência como indivíduo, alma e espírito”

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Vitória Basaia: “arte para mim é sobrevivência como indivíduo, alma e espírito”
(Foto: Ednilson Aguiar/O Livre)

Falar de sua obra para Vitória Basaia é falar de sua vida. Nem os tempos de jornalismo distanciaram da arte a menina cuja idade segue sendo uma incógnita. Pelo contrário, o ofício de contar histórias de forma criativa e transformar fatos em narrativas aguçou a sensibilidade que carrega desde criança.

Como filha, foi educada para criar. Como mãe, ensinou e se aperfeiçoou. Até mesmo o papel jornal já foi suporte e material artístico. Nas mãos de Vitória, tudo vira arte – arte que para ela também é morada. “Pra mim arte é vivência. O meu conceito sobre ela é de vida. Eu agradeço a Deus todo o dia esse canal, porque é uma benção receber essas ideias”, afirma a artista.

A Casa Basaia – casa, museu e ateliê de Vitória – reflete o acúmulo de experiência de arte e vida ao lado do companheiro Jota, com quem vive há 45 anos. Um universo muito próprio no bairro Nova Várzea Grande, zona metropolitana de Cuiabá, que o pesquisador Alexandro Uguccioni Romão definiu como o “canal paridor” da artista:

“No contexto de sua poética, é como se esse estado de abrigo e proteção proporcionasse o relaxamento necessário capaz de transformá-la num ‘canal paridor’ por onde nascem suas obras”, escreveu na dissertação “O universo de Vitória Basaia: a poética da inquietação”.

(Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

A grande instalação

“Quando chegamos aqui, o Jota tinha uma construtora e comprou o lado esquerdo da rua para construir. Eu ficava numa casa e quando ela estava quase pronta, ele me passava para outra casa. Até que eu falei assim: olha só, você pode me colocar numa tapera, mas eu não arredo mais o pé daqui. Isso era uma casa velha, só tinha a varanda, sala, banheiro, um quarto e um pé de Pequi”, lembra Vitória.

A árvore típica do cerrado e o fruto símbolo da culinária goiana (origem de Jota) teria sido um elemento crucial para a escolha do imóvel. Seu tronco vive ali até hoje, mas como obra de arte.

Assim, a tapera de Vitória, que é carioca, foi se transformando em uma grande instalação. Cabeças de bonecas, papel de balinha, mouse de computador, sapatos, retalhos de tecido, resíduos naturais: tudo ganha novas formas, cores e propósitos ali dentro. Entre os vários cômodos, ela vai juntando o que está “fora do lugar” e se explica: “hoje eu ainda não cheguei aqui”.

São mais de 2 mil obras em um só quarto. Nele, um armário guarda pelo menos 100 desenhos em cada gaveta. Obras das quais ela garante que não se esquece, pois o amigo e pesquisador Serafim  ajuda a catalogar.

Noutro quarto, seu laboratório plástico – espaço que Romão prefere chamar de “ventre criativo” –, ela guarda e transforma objetos em matéria-prima, dando vasão a personalidade acumuladora. As cores terrosas, figuras felinas, os corpos femininos, autorretratos e seres nus, que resultam das mais diferentes combinações, se espalham em estantes, baús e paredes.

“A obra está expulsando a gente de casa. Vai chegar uma hora que vamos ter que construir para cima, porque daqui ninguém me tira, só quando eu partir. Não quero ir para outro lugar”, afirma Vitória.

(Foto: Ednilson Aguiar/O Livre)

“Folhas letradas me adubam”

Outro aspecto notável na arte de Vitória é a palavra. Grande parte das obras ganham frases de sua autoria. No dia da visita à Casa Baisaia, questionada sobre tal característica, a artista revelou o mote de uma de suas novas produções: “folhas letradas me adubam”.

A habilidade com as letras e a sensibilidade para arte, para ela, estão intimamente ligadas às suas experiências com o jornalismo. “Sempre gostei de escrever e, mesmo sem curso, me engajei em trabalhar em 1981, depois recebi o reconhecimento pela lei Camata”, lembra Vitória.

Naqueles tempos, viabilizar um jornal diário exigia muita criatividade: “não tinha pauta suficiente. A gente pegava aqueles almanaques antigos de datas comemorativa e criava em cima disso”, conta.

Na profissão que foi deixando aos poucos, Vitória já passou por redações, assessorias e se engajou em gestões do sindicato. Mesmo sem diploma, já foi homenageada por várias turmas de Jornalismo e deu aulas em cursos de arte por meio de projetos de extensão da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).

(Foto: Ednilson Aguiar/O Livre)

Seu maior exercício como repórter, à época, era ser, em suas palavras, “meio Bombril”: “você tinha que aprender um pouco de tudo, até sobre como revelava uma fotografia… Quando começou essa coisa de editoria, eu peguei só o segundo caderno: cultura e entretenimento. Hoje eu acho que esse caderno é último”, ironiza.

As informações chegavam embaralhadas por Telex, sistema de informação anterior ao Fax. Talvez assim Vitória tenha aprendido a viver em seu “caos organizado”. “Era uma papelada que enrolava, enrolava, caia, caia… Você não sabia se a informação era de ontem, emendavam o dia… Era uma coisa até perigosa. Eu brincava: vamos nos atolar em papel!”.

Com sua perspectiva criativa, a artista criou o “Corujinha do Estado”, primeiro jornal voltado para crianças. “Era um jornal da qualidade do jornalzinho da Folha de São Paulo. Eu conseguia a colaboração das crianças, com as escolas, criava concurso de historinhas. Eles criavam histórias com desenhos e eu publicava”.

Basaia não sabe dizer quando a artista começou. Mas ainda na década de 1980 ela já acumulava um grande acervo artístico. Foi a amiga Justina quem a instigou a montar sua primeira exposição: “Vitória se atreve” mostrou sua arte ao público em 1989.

(Foto: Ednilson Aguiar/O Livre)

Os bichos 

“Quebram louça, se juntam e abrem armário. Ontem eles roubaram um saco de pão de queijo e um saco de pão integral. Esses dias eu fiz um arroz com carne e deixei numa panela de vidro, com uma colher entremeada entre a tampa e a panela. Eu fiquei só observando…. Um deles tentando levantar a colher para levantar a tampa, enquanto o outro tentava segurar. Eles entram em bando e se resolvem!”.

A natureza e suas mais diversas espécies não estão presentes na vida e obra de Basaia apenas através da representação. Mesmo sem serem convidados, dezenas de gatos também fazem morada na casa de Vitória e Jota, assim como o cãozinho Amor.

“Esses dias eu li uma matéria interessante sobre a simbologia do gato na espiritualidade… O gato preto é isso, o amarelo é aquilo… Falei ‘Jota, nós estamos com muita proteção, porque aqui tem amarelo, preto, branco, estampado, tem toda cor aqui”, lembrou, à gargalhadas.

Vitória conta que sempre quis ter bicho. Quando mais nova, a avó provocava: “quer bicho de pé?”. Ela respondia, afiada: “não, quero bicho de colo”. Ainda criança, ela também aprendeu que fazer arte é brincar.

“Sempre fui uma criança muito criativa. Minha mãe era uma grande artesã, fazia coisas incríveis, mas só para ela. Não era uma profissão, era mais uma distração. Minha vó também era muito criativa, ensinava brinquedos e brincadeiras manuais. E eu era muito danada, de todas era ‘a’ impossível”, lembra.

(Foto: Ednilson Aguiar/O Livre)

Grande mãe

“Eu acho que comecei a fazer as coisas brincando com meus filhos. A própria pesquisa de terra, das cores, tudo foi em função da educação. Eles tinham o dia de quebrar brinquedo, destruir brinquedo. A gente cortava uma perna de um boneco, colocava no outro, para eles aprenderem a criar. Todos são grandes contadores de histórias”, relembra Vitória.

A maternidade foi essencial para sua consolidação enquanto artista, a conectando com aspectos femininos e elementos da natureza. Com os filhos, na chácara da família, ela aprendeu a criar com cera de abelha, dissolvida em frutos, folhas e raízes do cerrado, e tingir tanto com pigmentos vegetais, quanto minerais.

“Isso aqui é tudo folha de lauda, papel jornal”, diz, apontando para os desenhos na parede. “Quando eu ia para chácara eu levava as coisas que sobravam e ficava desenhando, fazia experimentação de cores… os meninos era meus companheirinhos”.

Atualmente, com os filhos crescidos e formado doutores, Vitória e Jota passam três meses em “retiro” na Casa Basaia, produzindo e economizando o dinheiro que investem em viagens de 15 dias. “A gente se revigora e cada viagem é uma universidade, mesmo que seja dentro dos nossos Brasis”, conta a artista. E assim fazem há cerca de 10 anos.

A propósito, Vitória revela que seu único mercado é o desenho e a maioria das obras são adquiridas por colecionadores de fora do Estado e país. “Se não tivesse isso [mercado externo], eu tava mal paga. Eu tenho a minha aposentadoria que, entrando ou não entrando [dinheiro com arte], ela me dá o sustento para continuar produzindo”.

A artista garante: nada que produz é feito para vender. “Nunca, porque a arte para mim é uma questão de sobrevivência, mas enquanto indivíduo, como alma e espírito. Então como eu entreguei isso, ela sempre me dá o retorno, não cobro dela. Eu também não me prostituo em função dela, ela é sempre livre, ela é o meu processo de criação”.

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