Garantir os direitos das crianças à educação, bem como mantê-las à salvo de violências – principalmente as sexuais – são os atuais desafios das redes de proteção, com a chegada da pandemia do novo coronavírus.
Na semana em que a principal ferramenta de defesa desse público, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), completa 30 anos, questões como o fechamento de escolas fazem parte das discussões dos órgãos de atendimento.
Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescentes da Ordem dos Advogados do Brasil em Mato Grosso (OAB-MT), Tatiane Barros Ramalho explica que o risco de contaminação, que impede a retomada das aulas presenciais, também tira das crianças e adolescentes um espaço seguro, de acolhimento, onde a maior parte dos casos de violência doméstica e sexual é descoberta.
Quanto ao que envolve o aprendizado, a advogada lembra que enquanto a discussão está no campo do aprendizado ser ou não efetivo no ensino à distância, via internet, a maior parte das crianças carentes sequer tem acesso a ela ou a um computador.
“Ainda não se têm soluções propostas, porque as situações geradas pela pandemia são novas. Porém, mostra-se claro a necessidade de fortalecimento da rede de proteção”, enfatiza.
Abuso sexual
Além das disciplinas do currículo, é na escola que os conselhos tutelares, Ministério Público e Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) fazem campanhas de conscientização para que se entenda o que configura um abuso sexual.
Com didática e equipes multidisciplinares, existe um método diferente para cada faixa etária. Tatiane Ramalho conta que chegou a passar pela experiência de abordar o tema da violência sexual em uma escola e, depois, ser comunicada pela diretora que muitos alunos procuraram a coordenação para denunciar agressores.
“Ainda temos muito forte na cabeça das pessoas que o abuso acontece apenas quando há penetração. Mas não é isso. O toque e outras situações também podem configurar e devem ser denunciados”, lembra.
Inimigo íntimo
Conforme informações dos órgãos de segurança pública, 90% dos acusados de abuso sexual são membros da família ou estão perto do circulo íntimo de amizade da vítima.
Isso coloca em alerta toda a rede de proteção de crianças e adolescentes, pois como eles estão mais tempo em casa, por conta da quarentena, ficam ainda mais suscetíveis aos agressores.
Para a presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente da OAB, a situação mostra a importância de se intensificar o trabalho de conscientização fora dos muros escolares, para que vizinhos e pessoas que convivam com a vítima tenham condições de denunciar.
Ela pede que quem tiver uma suspeita de maus-tratos ou abusos ligue para o disque 100, que é uma central nacional, ou busque o Conselho Tutelar da sua cidade.
Os guardiões do ECA
Oilson de Souza Júnior é conselheiro tutelar há cinco anos, pois está no segundo mandato. Ele conta que a rotina de trabalho é pesada e a profissão o fez repensar várias coisas na sua vida.
Quando foi eleito, ele conta que pouco sabia sobre a legislação e os encaminhamentos e foi aprendendo como atuar no dia-a-dia, fazendo cursos e atendimentos.
“Estudar é a parte mais fácil. O difícil é encarar as crianças e adolescentes vítimas de todo tipo de violação de direitos. Percebi que a família precisa ser fortalecida. Hoje, é cada um por si. Às vezes acho que Deus mandou a pandemia para que possamos ficar mais tempo perto dos nossos filhos e sermos pessoas melhores“, avalia.
Entre todos os casos que atendeu, Oilson conta que o mais pesado foi de uma menina que era abusada pelo pai, irmão e ainda havia suspeita de que o tio participava do crime.
Uma situação que ele viu se repetir com outros personagens ao longo dos anos.
“Nós começamos a trabalhar pensando que vamos ajudar muito as crianças, mas acabamos frustados porque muitas das atribuições dos conselheiros acontece apenas no papel“, argumenta.
Para o conselheiro, muitas das ações esbarram em questões orçamentárias e estruturais. Um dos exemplos citados é a falta de um local para internação de crianças viciadas em álcool e drogas.
Atualmente, há apenas o serviço ambulatorial, ou seja, a vítima passa pelo acolhimento e depois volta para casa, onde retorna ao convívio de todas as “mazelas” sociais que vivia.
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Júnior cita ainda a falta de políticas públicas para a proteção das crianças e adolescentes, a oferta de ensino profissionalizante para jovens, bem como a falta de recursos para ajudar as famílias em situação de vulnerabilidade.
“Nós fazemos nossa parte, mas é tanta gente precisando, que a ajuda pode demorar muito a vir”, esclarece.
Mesmo com todas as dificuldades, o conselheiro assegura que não desanimou e continua o trabalho e os atendimentos. O que o motiva? Saber a importância do seu trabalho para as crianças.
Atendimentos na pandemia
Durante o período de quarentena, o número de atendimentos nos conselhos tutelares diminuiu. Conforme Júnior, como as escolas estão fechadas e elas eram a grande interlocutoras com o Conselho, houve a redução dos casos.
Ele acredita que o fato dos pais estarem mais em casa e acompanhando os filhos também impactou no cenário.
“As crianças e adolescentes estão sendo acompanhadas de perto e, com o ensino à distância, é preciso atenção com relação as tarefas e as aulas”, afirma.
Com relação aos casos de abuso sexual, o conselheiro defende que, assim como as crianças estão em casa, os pais e familiares também, o que reduz a oportunidade de ação dos criminosos.