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Vai um guaraná ralado aí? Costume é mantido por famílias cuiabanas e pela nova geração

Músicas tradicionais dão ritmo do bastão quando passa sobre a grosa

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Vai um guaraná ralado aí? Costume é mantido por famílias cuiabanas e pela nova geração
(Foto: Divulgação)

“De manhãzinha quando o galo acorda a gente, já no batente a sinhazinha está.
O Manézinho tá na rede esperando, sinhazinha tá ralando o guaraná.
Mete o açúcar refinado no copinho, mistura o pó e começa a lida.
Em cada lar esse batuque é costumeiro, ninguém consegue sem ele viver.
O guaraná na juventude é refresco, na velhice remédio para rejuvenescer”.

A canção resume muito bem a vida de muitos cuiabanos que, numa espécie de ritual, bebem diariamente a dose de guaraná. Parte deles são fieis e não falham nenhum dia.

A semente é o fruto do guaranazeiro, rico em estimulantes como a cafeína, em fósforo, ferro, cálcio e vitamina A e B1. O guaraná é comercializados em formas diferentes: rama, bastão, em pó, cápsulas e xaropes e essências.

Alguns ingerem pela manhã. Outros preferem a dose diária de guaraná depois do almoço; após a sesta. Izabel de Arruda Campos, uma sorridente e simpática senhora de 77 anos é uma dessas.

Dona Nini, como é chamada, vai para o cozinha preparar a mistura sempre após o costumeiro cochilo depois do almoço. A ideia dela é ter energia para concluir o resto do dia.

As lembranças

O costume ela herdou do pai ainda na época de infância. As lembranças são da fazenda em Nossa Senhora do Livramento (a 42 km de Cuiabá), onde viveu até a idade de entrar na escola.

Da época no campo, se lembra da preparação dos peões que muito cedo saíam para a lida no campo. A matula, além da comida, sempre tinha porções do pó para o preparo da bebida.

“Onde tinha água eles paravam e preparavam o guaraná para o consumo”, lembra.

Depois de se mudar para a cidade, a tradição continuou. Dona Nini acredita, porém, que o costume está perdendo forças. Fica surpresa ao ouvir o relato de uma jovem cuiabana de 19 anos, estudante, que toma o guaraná. “Que bonitinho”, exclama.

(Foto: Arquivo Pessoal)

Ingrid Vitória da Costa Velasco é a jovem estudante. Estagiária, ela diz que precisa de energia para as atividades do dia-a-dia.

De segunda a sexta-feira acorda às 4h40. Até 20 minutos depois de abrir os olhos já preparou e bebeu a dose do guaraná.

Ela só volta para casa 23h e diz que nunca reparou se a ingestão do guaraná é que lhe dá ânimo para a agenda lotada.

“Mas quando falo para as pessoas o que faço, elas ficam de boca aberta. Então, analisando o guaraná ralado tem suas vantagens”, avalia.

Assim como os peões da infância de Dona Nini, Ingrid carrega na mochila a mistura do pó do guaraná com o açúcar. “Se tiver com vontade e encontrar uma água gelado, faço na hora”, conta rindo.

A tradição de ralar

“Na grosa vai, na grosa vem. Eita pózinho que faz um bem”, a canção continua.

O momento de ralar o guaraná é considerado um ritual e está presente na memória de muitos cuiabanos e moradores da Baixada.

A tradição sempre foi ralar o bastão em casa. Dona Nini, Zuleica e Ingrid presenciaram o costume com o mais antigos.

O trabalho é feito com uma grosa, ferramenta de aço com ranhuras. Em uma tábua de madeira, coloca-se uma folha de papel e encaixa-se a grosa.

O bastão de guaraná é ralado em uma única direção, de ponta para frente. Caso contrário, o pó queima e o gosto fica amargo, alertam os mais velhos.

Na casa de Nini, a tarefa era da irmã já falecida, Dumá. “Fazia com gosto e para toda a família”.

Um primo desembargador sempre encomendava o pó de guaraná. Ao fim do trabalho, ela deixava uma sobra do bastão para provar que ralou até quando foi possível.

Já Zuleica via o avô no trabalho de ralar o bastão. Segundo ela, a reclamação era de que a mistura já pronta não tinha o mesmo sabor.

A ligação com o avô sempre foi forte. Aos 10 anos, porém, ele morreu. Juntos até o último momento foi ela quem realizou o último desejo dele: uma última dose de guaraná ralado.

“Me lembro de colocar o guaraná na boca dele, vê-lo beber e depois de um tempo morrer”, conta.

A jovem Ingrid via o bisavô – hoje com 95 anos – ralar o bastão de guaraná no quintal de casa. A tradição passou para o avô. Por causa da idade, nenhum deles faz o trabalho manual. A ingestão da bebida é que não falha.

(Foto: Reprodução)

De olho na dose

A cantora Zuleica Cunha de Arruda, 58, por outro lado, nem pestaneja ao citar os benefícios que o guaraná ralado traz para a saúde. Se gaba ao afirmar que não tem nenhuma doença. Crédito ao guaraná.

Para ela, a funcionalidade tem comprovação. Certa vez levou uma encomenda para o artista plástico e finado carnavalesco Joãozinho Trinta.

“Ele fez um caldeirão no barracão da escola de samba e quando era meia noite a preparação para o carnaval já estava pronta de tanto que o povo trabalhou”, conta sob gargalhadas.

Por causa da presença da cafeína, é que os benefícios ao longo do dia são sentidos. A concentração chega a ser maior no guaraná do que no café. Por isso, a bebida é energética.

A indicação, contudo, é que sejam usadas de 2g até 5g diárias.

De acordo com a nutricionista Gracielly Navarros, o guaraná só é contra indicado para hipertensos.

Dependendo da dose, o guaraná pode causar taquicardia, insônia e dores gástricas. Para as crianças a dose deve ser ajustada, caso haja consumo.

Para Dona Nini, a taquicardia é o ‘batimento’. O funcionário de uma pet shop que vai até a casa dela para dar banho e tosar as cachorras de estimação, diz ela, sempre recusa o guaraná. O problema: “dá batimento”, sorri com certa ironia ao contar.

Abstinência pela fé

Ilma – uma senhora que ajuda Nini nos afazeres domésticos e na cozinha é uma ex-tomadora de guaraná ralado.

Ela conta que preferiu deixar a bebida de lado. Seguiu só com o café. A motivação foi uma aparição de Nossa Senhora. Na visão, segundo Ilma, a santa pedia que ela deixasse de beber o guaraná. Muito apegada na fé, Ilma não pensou duas vezes.

“Acho que ela errou a receita, não?!”, ironiza dona Nini ao ouvir o relato.

Nem todo mundo toma

Não é todo mundo que tem o gosto e a tradição do guaraná. Dona Nini bem que tentou fazer o filho Jesuíno pegar gosto. Nunca conseguiu. “Prefiro só de vez em quando”, explica ele. A cunhada de Nini já é o extremo oposto: se não toma, fica com dor de cabeça.

Para ela, tem que haver um meio termo. “É como se fosse um suco; nem forte, nem fraco”, explica.

Zuleica tem histórias parecidas. Nem os filhos nem os netos quiseram saber do guaraná.

“Criança quer é Coca-Cola. E isso acaba com eles”, adverte, dizendo que a antiga tradição está se perdendo. “Antes toda os cuiabanos tomavam. Chegavamos na casa de alguém e já se serviam o guaraná. Era como um cafezinho hoje em dia”, lembra.

Uma irmãs de Zuleica mora no Rio de Janeiro há 40 anos e também é fã do guaraná. Por lá, o guaraná ralado é difícil de encontrar. Para matar a vontade, só com encomendas direto de Cuiabá.

“Toda vez que vou para lá eu é que levo daqui. E tem que levar de fardo, porque ela não fica sem”, diz.

Dia do guaraná ralado

Uma lei estadual criou o Dia do Guaraná ralado em Mato Grosso. A lei, de autoria do deputado Max Russi, institui o Dia Estadual do Guaraná, comemorado, anualmente, no dia 5 de abril.

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