Elizeth Cardoso e Elza Soares tornaram célebres os versos compostos por João do Violão: “Eu bebo, sim, estou vivendo,/tem gente que não bebe,/ está morrendo”.

Mas surge terrível erro de lógica nos próximos versos: “Tem gente que já tá com o pé na cova/ Não bebeu e isso prova/ Que e bebida não faz mal”. É insensata a relação entre morrer e se abster de bebida. 

Todos morrem, os que bebem e os que não bebem. O excesso de bebida – alcoólica, naturalmente – resulta numa doença terrível, a cirrose, palavra vinda do francês cirrhose, vocábulo criado em 1805 pelo médico francês René Laënnec (1781-1826), a partir dos compostos gregos kirro, amarelo, e o sufixo ose, provavelmente radicado também no grego nose, doença. O doutor, comparando um fígado sadio com o de um alcoólatra, registrou a cor amarela das granulações no do bebum.

O famoso humorista gaúcho Aparício Torelly, que adotou o título nobiliárquico de Barão de Itararé, para fazer blague em cima de uma batalha que não houve, na localidade que lhe inspirou o baronato, descobriu o inverso, sem fazer pesquisa nenhuma: ‘o fígado faz muito mal à bebida’.

Não usamos em Português o verbo equivalente ao Latim potare. Dizemos da água boa para beber que é potável, do Latim potare, beber, suplantado pelo Latim bibere, que deu beber em português.

Outra palavra abandonada foi equus, que cedeu a caballus, cavalo. Mas o radical permaneceu em equitação, o exercício, a técnica ou a arte de andar a cavalo. E, claro, transformou-se num esporte em que homem e animal devem ter entendimento que raia a perfeição. 

Paradoxalmente, cavalo veio a designar o bruto, a pessoa sem modos, rude. Uma injustiça ao animal, o que, aliás, ocorre também com o burro, invocado para ofender o estúpido, o que não tem inteligência. Ah, se os ofendidos tivessem ao menos um pouco da sabedoria do burro!

O escritor João Guimarães Rosa deixou patente sua admiração por bois, cavalos e burros, especialmente pelo pequeno animal que ele celebrizou no conto O burrinho pedrês. Na história, ameaçado de morte, um bêbado chamado Badu, montado no animal, chega são e salvo ao outro lado de um rio cheio. Oito vaqueiros morrem, mas Francolim também é salvo de modo insólito: agarra-se ao rabo de Sete-de-Ouros, o burrinho pedrês.

Também a palavra morte, radicada no latim em mors, prevaleceu sobre letum, que predominava no latim clássico para indicar o falecimento. No português, letum permaneceu na raiz de palavras como letal, letífico, letífero. 

E falecer veio a consolidar-se como sinônimo de morrer, quando originalmente indicava faltar e também enganar, do latim fallescere. Está ainda hoje presente em expressões como ‘se algum dia eu vier a faltar’, em que ‘faltar’ é eufemismo para morrer.

Já defunto, outra designação para morto, veio do latim defunctus, cujo significado é pronto. Também é um eufemismo. Foi criado pela Igreja, sempre cerimoniosa com os atos decisivos de nossa existência – nascimento, casamento, morte etc. Defunctus formou-se a partir de defungi, cumprir, acabar, terminar.

Ager, o campo cultivado, cujo genitivo é agris, está embutido em agrário, agrimensor, agricultura. Está na ordem do dia – aliás, há mais de quatro séculos – a ‘reforma agrária’ que, como as palavras indicam, consiste em reformar, isto é, corrigir, retificar a posse agrária, a propriedade da terra.

Como se vê, faz séculos que as palavras viajam e fazem mudanças de significado. A balzaquiana tinha apenas 30 anos no século 19! Atualmente, com a mesma idade das célebres personagens de Balzac, a mulher é mocinha ainda.

A balzaquiana de hoje tem pelo menos 50 anos. Talvez o mundo beba mais hoje do que no tempo de Balzac, mas uma coisa é certa: nenhum dos grandes facínoras da Humanidade estava bêbado quando deflagrou malefícios duradouros, que resultaram em abomináveis genocídios. 

Estavam todos sóbrios e sabiam muito bem o que faziam.

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