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Um hospital e nenhuma vaga: as mazelas do atendimento psiquiátrico em MT

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Um hospital e nenhuma vaga: as mazelas do atendimento psiquiátrico em MT
(Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

Os corredores de paredes sujas e com a tinta descascada, as janelas com vidros quebrados e as grades que rangem dolorosamente quando são abertas ou fechadas não fazem mais parte da casa de Maria de Fátima. Há cerca de dois meses, ela deixou o Centro Integrado de Assistência Psicossocial (CIAPS) Adauto Botelho, em Cuiabá, para viver em seu próprio lar.

Foram anos de “internação” no hospital psiquiátrico que não é só “referência”, mas simplesmente o único de Mato Grosso – tanto da rede pública quanto particular. Uma unidade de saúde que, passados 18 anos da publicação da Lei 10.216, conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica, ainda aguarda por uma reforma – física – que promete, enfim, acabar com o estereótipo de manicômio.

Maria de Fátima chegou ao Adauto Botelho de uma forma diferente do restante dos pacientes: sozinha, “de mala e cuia”, segundo a arte-terapeuta Ana Lúcia Taveira, e sem documento ou recordação que indicassem quem ela era ou de onde tinha vindo. “Todas as buscas pela família foram infrutíferas”, lembra o diretor do hospital, João Santana Botelho.

Em regra, para entrar e ocupar uma das 70 vagas na Unidade 1 do Adauto – onde Maria de Fátima viveu – é preciso estar no ápice de um surto psicótico. O encaminhamento, quase sempre, parte de uma Unidade de Pronto-Atendimento (UPA).

E se para muita gente que precisa de tratamento é difícil conseguir um leito, para alguns pacientes o maior desafio está em sair do hospital psiquiátrico. Em diversas situações os esforços da equipe multidisciplinar em encontrar as famílias esbarra na negativa delas em receber seus entes novamente.

“Quantas vezes a gente foi levar paciente que recebeu alta e a família não queria… Já imaginou a situação? Deixar na rua não dá. A gente traz de volta”, conta Ana Lúcia. Isso quando as famílias são encontradas. Segundo o diretor da unidade, muitas fornecem dados falsos quando deixam seus doentes no Adauto.

(Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

Maria de Fátima, diagnosticada com esquizofrenia, chegava a falar nomes de pessoas, a dizer que tinha filhos, mas ninguém nunca foi identificado. A frustração levou a equipe de assistentes sociais do hospital ao “plano B”: providenciar novos documentos que possibilitassem a ela uma aposentadoria.

Com o passar do tempo e o tratamento, Maria começou a dar sinais de que não precisaria permanecer ali para sempre. Alguns pacientes, segundo o diretor, estão na unidade há mais de 20 anos. Para Maria, uma “cozinha terapêutica” – montada, segundo Ana Lúcia, com material providenciado pelos próprios servidores do Adauto Botelho – foi a “cura”.

A atividade revelou que Maria de Fátima tinha o dom de fazer bolos e a ajudou a recuperar o equilíbrio mental. Já a “venda” dos bolinhos para quem trabalhava no hospital demonstrou que ela também sabia lidar com dinheiro, uma habilidade necessária para a vida fora do Adauto. Maria estava pronta para ser independente de novo.

Ambiente patológico

Desde 2001, ano da publicação da Lei da Reforma Psiquiátrica, a regra para lidar com pacientes que têm transtornos mentais é a mesma que foi aplicada no caso de Maria de Fátima: as internações devem durar somente o tempo necessário.

O médico Carlos Renato de Lima Periotto, presidente da Associação Mato-grossense de Psiquiatria, afirma que o “modelo manicomial” era diferente. “Não tinha medicamentos ou tratamentos adequados. O que tínhamos eram grandes hospitais onde simplesmente colocavam as pessoas”.

O propósito da mudança, nas palavras do deputado estadual Lúdio Cabral (PT) – médico do Sistema Único de Saúde (SUS) –, foi acabar com os “depósitos de gente”. Entendeu-se, segundo ele, que o sistema de internação então existente não funcionava, já que, “sem estar em crise, mas convivendo com pessoas que estão e em um ambiente patológico, o paciente não ganha autonomia nunca”.

O processo, por vezes, é longo. Maria de Fátima chegou ao Adauto Botelho em 2011, segundo a arte-terapeuta Ana Lúcia Taveira. E mesmo depois que a equipe já havia providenciado o aluguel da quitinete – nos arredores do hospital – em que ela vive hoje, “até ela aceitar que aquela casa era dela, foi difícil”, conta a servidora pública. “O legal para a Maria era morar aqui”.

Ainda hoje Maria de Fátima precisa de acompanhamento e o recebe no próprio Adauto. Médicos, enfermeiros, terapeutas e assistentes sociais agora são como amigos. “Todos os dias a gente vai lá. Compramos um celular para ela. Tem dias que ela esquece de carregar. A gente fica desesperado e vai lá para ver se está tudo bem”, Ana Lúcia se diverte contando.

Para os pacientes que – diferentemente de Maria de Fátima – não recuperam a condição de viver sozinhos, quando os antigos manicômios – além do Adauto Botelho, havia o Hospital Neuropsiquiátrico – foram desativados, foram criadas 11 residências terapêuticas em Cuiabá.

Atualmente, de acordo com a Prefeitura da Capital, existem seis dessas unidades. Nelas vivem 48 pessoas assistidas por 59 servidores do município. São pacientes cujas famílias não foram localizadas. E a rede, principalmente, no interior do Estado, é insuficiente.

O diretor do Adauto, João Santana Botelho, afirma que muitos pacientes têm os tratamentos descontinuados quando recebem alta do hospital, o que os fazem voltar – de novo em crise – a serem internados na unidade de alta complexidade.

Rede de assistência

Os médicos João Santana Botelho, Carlos Periotto e Lúdio Cabral são unânimes: a rede de assistência que deveria ter sido criada com a Reforma da Psiquiatria ainda não existe em sua totalidade.

Pelo que estava na lei, os manicômios seriam substituídos pela oferta de atendimento especializado que existiria desde os Postos de Saúde de Família (PSFs), passando por unidades de média complexidade – como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) –, até chegar ao Adauto Botelho, o último recurso para os casos realmente graves.

Segundo o presidente da Associação Mato-grossense de Psiquiatria, o que se viu, contudo, foi a troca dos manicômios por uma única porta de atendimento: a dos CAPs. “E os CAPs não fazem tudo”. Além disso, os próprios Centros de Atendimento Psicossocial não existem a contento.

Conforme Lúdio Cabral, Cuiabá deveria ter duas unidades de CAPs 3, que são os centros destinados a cidades com mais de 300 mil habitantes. Neles, além do atendimento ambulatorial, haveria leitos e equipes especializadas em casos de urgência, ou seja, preparadas para controlar pessoas em surto psicótico.

Em nota, a Prefeitura de Cuiabá reconheceu a deficiência em uma série de serviços essenciais ao bom acolhimento dos pacientes, mas destacou que vem redesenhando a rede e que uma unidade de CAPs 3 “já está em processo de implantação”.

Enquanto isso, pacientes em surto, em geral, acabam encaminhados para uma das Unidades de Pronto-Atendimento (UPAs), onde a regra é a sedação para encaminhamento ao Adauto Botelho, se houver vaga. E na lista de pacientes, de acordo com o diretor do hospital psiquiátrico, não estão apenas usuários do Sistema Único de Saúde. “Ledo engano”, ele pontua.

Carlos Periotto, psiquiatra que atua exclusivamente na rede particular, afirma que, quando um paciente que tem plano de saúde precisa de internação, se não for o Adauto Botelho, o caminho é recorrer a hospitais particulares de fora do Estado. Mato Grosso do Sul, Goiás e São Paulo são os destinos mais comuns, segundo ele.

Custo da psiquiatria

Dados do Conselho Regional de Medicina (CRM) apontam que Mato Grosso tem 93 psiquiatras com registro ativo. O número é mais do que suficiente para atender a demanda de duas enfermarias e um ambulatório de pronto-atendimento – fazendo sistema de plantões de 24 horas – em uma unidade da rede particular de saúde, na avaliação de Carlos Periotto.

“Deve haver o dobro de psiquiatras da quantidade de neurologistas ou geriatras em Mato Grosso”, aponta o presidente da Associação Mato-grossense de Psiquiatria, que emenda: “por que ninguém monta um hospital, então? Porque é caro!”.

Enquanto isso, na rede pública, Lúdio sustenta que o custo para oferecer tratamento adequado a quem precisa é apenas o da capacitação dos servidores. Medicação, o deputado garante que existe para atender a demanda. O que as pessoas têm dificuldade de conseguir são as prescrições.

“A maioria dos medicamentos exige controle de receita e é uma receita válida para 60 dias. As pessoas têm dificuldade de chegar ao médico. Às vezes, o médico do PSF não quer medicar porque não está capacitado para isso. Daí a pessoa tem dificuldade para, no CAPs, passar pelo psiquiatra. Existe muita descontinuidade no tratamento por isso”.

Segundo a Prefeitura de Cuiabá, nos Programas de Saúde da Família (PSFs) os únicos atendimentos são de pediatria e clínico geral. As demais especialidades, o que inclui a psiquiatria, são encaminhadas para unidades de atenção secundária.

Lúdio acredita, no entanto, que o perfil do médico do PSF que, em geral constrói um vínculo com a comunidade que atende, o torna uma peça fundamental no trabalho – principalmente –  de prevenção e combate ao agravamento dos casos de doenças mentais.

Um estereótipo que dura

A falta de qualificação dos profissionais não é uma realidade dentro dos muros do Adauto. José Santana Botelho e Ana Lúcia Taveira sintetizam em uma frase o que constata quem se atreve e consegue permissão para visitar a Unidade 1 do hospital: “nossa estrutura física pode até não ser boa, mas nosso tratamento é”, ele sustenta, ao passo que ela completa: “a equipe dá show”.

O aspecto de manicômio ainda está lá. E a reforma avaliada em aproximadamente R$ 8,5 milhões – iniciada e ainda não concluída – não ajuda a melhorar a primeira impressão. Tapumes separam as alas e tornam o local um labirinto, onde é fácil se perder. Durante quase todo o dia, a maioria dos ambientes mais externos do prédio estão vazios, o que contribui para o ar de abandono.

Segundo a Secretaria de Estado de Saúde (SES), “o ritmo da reforma diminuiu” por conta de “imprevistos técnicos e estruturais”. Por meio da assessoria, a Pasta sustenta, entretanto, que um novo cronograma “físico e financeiro, com as devidas adequações, já está sendo acordado”. A previsão de conclusão da obra, agora, é agosto de 2020.

Enquanto isso, quando se entra no setor onde os pacientes passam a maior parte do tempo, é difícil não comparar o ambiente ao de uma cadeia. As grades ainda estão lá para separar a ala feminina da masculina, mas também para isolar quem, por conta da doença, vive momentos de agitação que possam colocar os outros em risco.

Um olhar mais atento, todavia, nota o carinho entre pacientes e servidores. Dentro dos corredores do Adauto, o diretor José Santana Botelho se transforma no “papai”. E a revolta da arte-terapeuta Ana Lúcia Taveira com a falta de material para suas pacientes soltarem a imaginação é o que move a criatividade da própria servidora pública para encontrar alternativas à escassez.

Tabu e invisibilidade

Passados 18 anos da Reforma Psiquiátrica, além dos investimentos que ainda não foram feitos – e apesar dos quais o Adauto Botelho se sobressai positivamente – Lúdio Cabral e Carlos Periotto concordam que falta uma mudança de cultura na população. A psiquiatria, seus pacientes e até os médicos ainda são cercados por um tabu.

“É uma parcela da população que está invisível, que não vota, que não se mobiliza, que não exerce pressão, por isso o Estado sempre relegou ao terceiro ou quarto plano”, diz Lúdio. “A primeira coisa que precisa melhorar é a cultura da população. Ainda é hegemônico que o doente mental tem que ser afastado da sociedade”, completa o deputado.

Carlos Periotto afirma que este cenário tem mudado, mas também avalia que a psiquiatria sempre foi deixada de lado. Questionado se o motivo seria o fato de que doenças mentais são difíceis de serem vistas, ao contrário de outras patologias que afetam o corpo, ele pondera.

“Não sei se é só uma questão de dramaticidade: uma perna quebrada é mais grave do que um surto psicótico? Não sei comparar, mas digo que países desenvolvidos não pensam assim”, enfatiza.

“Pessoas mentalmente saudáveis pagam mais impostos, custam menos para o Estado. Prevenir e tratar doenças mentais graves ajuda a diminuir custos de sinistros do próprio sistema de saúde pública. Acho que as pessoas também não sabem disso. Elas não têm educação o suficiente sobre esse assunto para fazer uma crítica e cobrar dos políticos”, ele conclui.

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