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Um cuiabano na Boca do Lixo: conheça as façanhas cinematográficas de Rosalvo Caçador

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Um cuiabano na Boca do Lixo: conheça as façanhas cinematográficas de Rosalvo Caçador

Na casa onde vive com a família, zelado com carinho pela companheira Elizete, em Cuiabá, ele tem uma rotina bem diferente de cinco décadas atrás, quando, em São Paulo, caiu no reduto do cinema independente, a Boca do Lixo. Época que também teve seus (poucos) “luxos”. Hoje Rosalvo não gosta de ser chamado de “senhor” e aos 80 anos se orgulha das passarelas internacionais que nos mostra apontando fotografias em preto e branco. Nelas, 20 e poucos anos, a mesma panca de galã e os mesmos olhos expressivos, ao lado de moças esguias.

Logo que nasceu, Rosalvo Correia de Campos seria registrado pelo pai como Rosalvo Caçador, mas a mãe não permitiu tamanha estranheza. A decisão, porém, não foi empecilho para que o nome curioso figurasse na história do cinema brasileiro dos anos 1960 a 1970, ao lado de personalidades como Amácio Mazzaropi e José Mojica Marins, o Zé do Caixão.

(Foto: Luzo Reis)

Ator de comédias, faroestes, pornochanchadas e diretor do longa-metragem “macabro”, Rosalvo Caçador é o personagem que inaugura uma nova perspectiva de pesquisa em cinema para a Mostra CineCaos, que segue ganhando corpo com a 4ª edição, a partir deste sábado (18).

“A ideia é que, aos poucos, a gente vá firmando o Instituto Caos, projeto de cunho educativo e cultural. Queremos trabalhar com a dimensão da memória audiovisual, a partir da pesquisa com atores e realizadores que residem em Mato Grosso”, conta a idealizadora Eliete Borges.

(Foto: Luzo Reis)

A trajetória de Rosalvo veio à tona há sete anos, como homenageado pela 18º Festival de Cinema e Vídeo de Cuiabá (Cinemato), em 2011. Natural de Brotas, interior de Mato Grosso, foi na capital do Estado que ele (re)nasceu Caçador ao conhecer a sétima arte. “Aquilo era um espetáculo”, conta, sobre suas primeiras impressões em relação ao cinema, em expressão que usa toda vez que relata grandiosidades.

Naqueles tempos, um filme em especial o marcou: A Intocável (Sea Wife, 1957), aventura melodramática dirigida por Bob McNaught, de quem Rosalvo não lembrava o nome, batalhando contra as falhas da memória. “Esse filme eu não esqueço, em branco e preto, salvou só a mocinha principal. A fita toda se passa dentro d’água”, conta. No enredo, as aventuras de um casal sobrevivente de um navio de refugiados ingleses, atingido em alto mar durante a II Guerra Mundial.

Logo também vislumbrou entrar naquela telona. “Além de ator, cheguei a ser foquista, diretor de produção e até dirigi um filme com o Raul Calhado. Nessa luta de cinema tem tanta coisa que a gente tem que aprender e ver. Nos intervalos eu fazia desfile de moda, fotografia, teatro, televisão…”, adianta, em um breve resumo de sua história.

Como ator, seu primeiro trabalho veio por um anúncio no periódico Diário Popular, entre os muitos jornais que guardava para revender aos domingos. Era o que garantia o almoço do dia e os jantares na pensão onde morava, já em São Paulo. Sabendo que Rosalvo procurava “bicos” de figuração, foram os colegas que avisaram: “estão chamando para cinema”.

Naquele dia, desenrolou o jornal sentado no “trono”: “Quando eu li ‘cinema’, cortou minha vontade na hora!”, lembra, provocando risos. “Saí correndo igual um louco para o endereço informado procurar o tal Lourenço até as tantas horas, mas pensando ‘já perdi’”, relatou.

(Foto: Luzo Reis)

O responsável, de fato, já havia ido embora, mas o rapaz que atendeu orientou Rosalvo para que voltasse no dia seguinte. Seria recebido, e foi. Mas nem sempre tão fácil: “O mais difícil é esperar quando alguém se interessa e te dá uma chance”, afirma Caçador.

Os primeiros personagens (e o maldito bigode!)

O primeiro papel de Rosalvo Caçador foi um engenheiro em O Vigilante Rodoviário, seriado de televisão dirigido pelo cineasta Ary Fernandes e exibido pela TV Tupi, em 1961. Ali já começaram os primeiros pequenos desagrados; já estava preparado para encenar quando o diretor mandou: “Põe um bigode no Caçador, ele está muito novo para fazer o personagem”.

Mas o que Rosalvo ficou sabendo mais tarde, e conta, é que foi o ator protagonista, Carlos Miranda, quem quis envelhecê-lo. “Queria ser galã sozinho”, diverte-se. “Mas eu não tenho nada de galã. Graças a Deus! Eu gosto de ser antagonista e não protagonista”, ressalta, com uma de suas tantas tiradas.

(Foto: Luzo Reis)

Intercalando posições em frente e atrás das câmeras, logo deu vida a um “medroso”, personagem que, esporadicamente, se encontrava com um cangaceiro interpretado por Mazzaropi em O Lamparina (1964). Foi seu primeiro filme ao lado do renomado ator que também assinou a produção do longa.

“Ali eu aprendi muito, tive a chance de fazer algo bom”, conta Rosalvo, constantemente desafiado. “Você é capaz de fazer esse papel aqui?”, questionamento de colegas de cena, que logo foi substituído por elogios que o escalaram para outros três filmes do cineasta e ator.

Candeias e o Pantanal de Sangue

Rosalvo aponta o Pantanal de Sangue (1971), dirigido por Reynaldo Paes de Barros, como seu trabalho mais satisfatório como ator. “Dizem que a fita começa quando eu pareço”, lembra, orgulhoso. Até seu personagem, um bandido, entrar em cena, ele conta que o enredo é só papo furado. “Num filme de Bang Bang o pessoal quer ver tiroteio e eu já começo atirando”.

“Fiquei orgulhoso desse meu papel, até Davi Cardoso veio me cumprimentar”, lembra. Ator de importantes papeis no audiovisual brasileiro, ativo até 2016, seu primeiro filme foi O Lamparina, ao lado de Rosalvo e Mazzaropi.

Naquela época, atuar tinha maiores glórias, mas Rosalvo conta que também gostava dos bastidores. “O que aparecia eu fazia sem nunca medir esforços. Essas várias funções serviram-me bastante, porque eu aprendi e criei grandes amizades”, conta.

Como José Mojica? “O Mojica já é um cineasta assim… Meio devagar. Mas gostava de mim, o que podia fazer por mim fazia, fico devendo isso a ele”, reconhece. Sua grande admiração ficou para o diretor Ozualdo Candeias, cineasta pioneiro no cinema marginal, com quem trabalhou em A Herança (1970).

“O Candeias foi um dos caras que eu mais aprendi. Aquele cara era um cineasta até debaixo d’água! Iluminava, dirigia, fazia câmera, tudo. Tanto que tinha fotografia dele sentado com a câmera no tripé e a escrita ‘equipe do Candeias’, porque a equipe era só ele”, se diverte. “Fazia de tudo, impressionante”.

Rosalvo Caçador em A Herança (1970), de Ozualdo Candeias

Boca do Lixo

A propósito, Rosalvo conta que foi Candeias quem “inventou” – ou ao menos apresentou aos amigos – a tal da Boca do Lixo. Uma região não-oficial do Centro de São Paulo, localizada no bairro da Luz, que, a partir da década de 1960, se tornou um reduto (e cenário) do cinema independente brasileiro.

“Naquela época nos reuníamos na Costa do Sol, um restaurante até que fino. O dono do bar, um português, por sinal, já estava cheio de ver tanta gente do cinema sem dinheiro. Nós sentávamos sempre nas primeiras mesas, pedíamos um café ou outro, mas quase não gastávamos nada. Uma vez nós chegamos lá e estavam todas as mesas com cadeiras em cima. Era para ninguém sentar, saímos chateados e o Candeias falou ‘vamos lá para Boca do Triunfo’ e fomos em meia dúzia de gente”, conta.

O cineasta Ozualdo Candeias filmando na Boca do Lixo, em 1976.

Rosalvo conta que o espaço que contempla a rua do Triunfo, a rua Vitória e adjacências, foi um ambiente dos “pé-rapados” do cinema. A convivência ali rendia boas e cômicas histórias. Rosalvo, sempre piadista, era especialista em imitar Mazzaropi.

“Ali só aparecia aventureiro. Uma vez apareceu um cidadão que dizia ter 200 milhões de cruzeiros e queria alguém com mais 200 para produzir um filme que chamaria ‘A Bengala Negra’. Tinha gente que acreditava, eu questionava: ‘vem cá, esse dinheiro tá depositado onde?’. Virou uma palhaçada essa tal de bengala negra”, lembra, divertido.

Naquela época, Rosalvo era pouca idade e muita teimosia. Mudou-se de Cuiabá para São Paulo aos 20 anos para encarar a realidade de um mundo “glamouroso”, mas não se arrepende: “Eu deveria ter saído, comecei muito tarde”.

“Se foi difícil? Sem dinheiro, menina, pior ainda. Cheguei em São Paulo um caipirão de Mato Grosso, sem emprego e sem estudo, para fazer o que?! Cinema. ‘Mas cinema não dá’, pessoal falava. E eu achava que dava”. E até deu, mas sempre só para as despesas do dia. Cheio de planos, quis dirigir um filme.

Cartaz de O Macabro Dr. Scivano (1971), de Rosalvo Caçador e Raul Calhado (Foto: Luzo Reis)

O primeiro filme e o desencanto

“Raul, vamos fazer uma fita?”, propôs Rolsavo. O amigo Raul Calhado, à época, já se dava bem com as técnicas e topou. “Nós tínhamos duas histórias de terror e o título seria Dois Contos Macabros. Filmamos o primeiro, era ele sozinho na figura do Dr. Scivano”, conta. Assim, a sugestão do título que ficou foi do Caçador: O Macabro Dr. Scivano (1971).

No enredo, o protagonista Edmundo Scivano retorna à sua cidade natal após anos de fracassos na carreira política, mas só encontra desprezo e decepção em seu caminho. Inconformado e com raiva, decide, insanamente, realizar um pacto com o diabo para obter poder e riqueza para arquitetar sua vingança.

“Vocês vão fazer sucesso”, apostavam produtores de renome. Rosalvo pensava grande e queria investir. Para isso precisavam de 20 milhões de cruzeiros para terminar o filme e Caçador conta que chegaram a receber propostas, mas Raul não confiou. “Pensei que ia conseguir me libertar dessa porcaria de passar fome”, lembra.

“Você está afobado”, dizia Raul.
“Raul, não se iluda, nós temos uma fitinha”, contrapunha Rosalvo.

Terminaram o filme. Mas, insatisfeito com o resultado e com a parcela da recompensa, Rosalvo ficou aborrecido com Raul e não quis mais saber da fita: “Ele não queria fazer certas coisas. Era demais amarrado, caí fora”.

Segundo Rolsavo, seu desencanto com o cinema resultou de vaidades, mentiras e injustiça – em Pantanal de Sangue, nem seu nome, nem seu rosto, foram para o cartaz. Além disso, “ganhava uma porcaria”, como diz.

(Foto: Luzo Reis)

O assédio das mulheres eram um afago, mas uma glória que também lhe trouxe custos. “Era o que salvava né? Mas perdi muita coisa por causa de mulher”.

Rosalvo não se esquece da cobiçada Luana, atriz que conheceu na humilde posição de ajudante de produção. “Aqueles caras metidos a vice-diretor e eu, na minha pobreza, peguei a Luana!”, lembra, entusiasmado. Por causa do romance, também conta que foi cortado de uma fita do cineasta Alfredo Palácios.

Um belo dia, finalmente se cansou. “Cheguei na Boca e falei: “tô voltando para Mato Grosso, não quero mais saber de cinema, vocês façam a vontade que meu negócio é outro”.

“Ah, vai tomar mate! Eu tenho o estopim curto”.

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