Cresci ouvindo provérbios. Eram frases repetidas pela geração de meus pais e avós constantemente, com a intenção de educar. Todos continham alguma verdade que tinha a intenção clara de formar a percepção moral dos filhos, novatos no mundo. Alguns eram bem-humorados: “Vergonha é roubar e não poder carregar,” ou, “Em terra de cego quem tem um olho é rei.”  Outros vinham em forma de verso: Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher.

O provérbio: A gente é pobre, mas é limpinho, era uma destes. A moral principal é simples. A pobreza circunstancial não é motivo de vergonha, não é para ser lamentada, mas a pobreza de alma, de quem não se valoriza nem para manter limpeza ao redor de si, sim. A pobreza de valores é que é a vergonha. A gente é pobre, mas é honesto, é um outro provérbio aparentado. Honestidade, limpeza, são valores preciosos como joias que começam no espírito e refletem no estilo de vida.

Para ser limpinho você tem que reconhecer seu valor pessoal. Muitos sociólogos comentam que a pobreza brasileira não é miserável. Do ponto de vista cultural podemos dizer que temos pobreza no Brasil, mas pouca miséria. Qual é a diferença? A miséria é a pobreza sem dignidade, a pobreza sem valor próprio, subserviente, desesperada, trevosa, niilista.  Essa miséria se vê muito pouco. Do interior da Amazônia ao sertão nordestino em minha jornada missionária convivi sempre com a pobreza honrada.

O caboclo amazonense considerado pelas estatísticas da ONU como sendo parte dos 15% mais pobres da população mundial é um destes pobres limpinhos. Seu acesso à educação, sistema de saúde e até saúde de emergência é limitado ou quase zero. Sua moradia é um barraco de palmeira de pachiuba, construção efêmera que tem que ser refeita a cada dois anos, e não tem valor imobiliário nenhum. Mora em terras que não são dele, as famigeradas terras devolutas da União, e vive do extrativismo. Mas não tem um barraco que você não entre que não tenha algo que o transforme em um lar. Uma toalhinha em cima do caixote de madeira no chão, folhas lustrosas de revista colocadas na parede, panelas de alumínio ariadas para parecer espelho e desenhadas com pregos, pequenas obras de arte e beleza no calor verde da selva.

No Nordeste você vê o chão de vermelhão bem encerado, a foto antiga dos parentes ou do “Padim Ciço”, a flor de plástico decorando o barraco de adobe. Nós brasileiros achamos que viver vale a pena mesmo sem ilhas em Angra e jatos particulares.  Não estamos dispostos a fazer tudo para enriquecer, não somos um povo desonesto, que naturalmente despreza a moral em favor do ganho material. Amamos conversar com os vizinhos ao entardecer na porta de casa, seja ela de tijolos ou de barro. Amamos a jantarada na casa da sogra, a tubaína, a cerveja de sabor tão ruim que se não for super-gelada ninguém bebe. A vida é coisa boa.

Nossa cultura de matriz católica é carregada do senso de certo e errado, de responsabilidade para com o nome da família e a sociedade. Chamamos verdade de verdade e mentira de mentira. “Seu nariz vai crescer menino! Mentira tem perna curta. Mais vale um nome honrado do que um tostão no bolso.” Como explicar então a corrupção? Como então associamos por muitos anos política com corrupção e a consideramos um fato inevitável do ser brasileiro? Não é o “jeitinho” a legitimação da corrupção? Não somos todos Pedro Malazartes?

Apesar dos valores culturais que carregamos, ainda somos seres humanos com a natureza caída. A mesma sociedade que nos atribui valores que valem a pena preservar também nos confere uma noção de individualidade exacerbada que anula nosso compromisso com o coletivo. “Cada um por si e Deus por todos, Amigos, amigos, negócios à parte, Caiu na rede é peixe”… nos apontam para uma ética oportunista latente na moral popular.

Outro problema é a inevitável oportunidade para a corrupção oferecida pelo governo todo poderoso. Governo enorme é sem dúvida sinônimo de corrupção enorme. “Não há tatu que aguente!, diz a “vox populi”, referindo-se ao irresistível poder da tentação. Como apontou precisamente o sociólogo Joao Pereira Coutinho[1], não gostamos de corrupção, mas amamos governos superpoderosos. O poder corrompe e poder absoluto corrompe absolutamente [2].  Estado grande anda junto com corrupção. Quanto mais poder delegamos aos servidores públicos, mais vulneráveis os tornamos à corrupção. Sempre tivemos um estado patronal, poderoso – e portanto sempre tivemos um Estado inclinado à corrupção.

Nossos heróis sem caráter, Pedro Malasartes e Macunaíma, são peculiares até em sua calhordices. Malasartes mente, se desdobra para não passar fome, é verdade. Mas suas aventuras não incluem crueldades, ele não incorpora nunca o tirano que engana e oprime o próximo. Ele dá o seu jeitinho com limites. Ele não se apropria do poder: ele o subverte de baixo. Nesse sentido os chefões do governo passado traíram o Malasartes, talvez por isto foram vomitados pelo povo. Macunaíma também, por sua vez, está mais para Dionísio do que para Zeus.

Nosso Pedro I e Simon Bolívar o libertador eram bem diferentes. Bolívar era um tirano cruel candidato a Deus, que queria unificar a América do Sul num grande reino debaixo de seu comando. Nosso Pedro apenas queria uma transição pacífica para a independência. Entre o Malasartes, Macunaíma e Pedro I e Bolívar existe uma distância moral grande. A maioria dos brasileiros ainda não percorreu ainda essa distância. Não sonhamos com o poder a qualquer preço. Queremos dar certo, mas dar certo não é mais importante para nós do que ser certo.

Assim é o Brasil no qual eu cresci. Não merecemos a corrupção como alguns teimam em dizer, nem ela faz parte de nosso tecido social. Mas creio que podemos, sim, com fé e bom caráter, nos livrar dela. Porque, afinal, somos mesmo é limpinhos.

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(Publicado inicialmente na revista Ultimato 2016).

[1] “As Ideias Conservadoras”, Coutinho, João Pereira, Três Estrelas, 2014.

[2] Frase de John Dalberg-Acton

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