É possível que você já o tenha visto pelas ruas – de dia ou de noite – lá pelas bandas do Distrito Industrial ou do Centro de Cuiabá. O autônomo que durante dia vende pão caseiro, e de noite amendoim, circula pela cidade desde os 10 anos de idade. No início, acompanhado pelo pai; hoje, com sua Honda Titan 150, que ele reforça: conquistou a custo de muito trabalho.

“Tem gente que fala: ‘está ganhando dinheiro, hein?!'”, ele diz sobre alguns que o vêem estacionando a moto. “Aí eu respondo: ‘mas você não imagina quanto tempo e o quanto eu tive que trabalhar'”.

Traçando um paralelo, a vida de Cristiano Ferreira de Castro, de 32 anos, evoluiu, embora não tenha mudado tanto.

“Quando éramos crianças, íamos em quatro em uma bicicleta. Meu pai guiando, dois na garupa e outro no quadro”. O pai aguardava os filhos enquanto eles vendiam chaveiros, ímãs de geladeira, rosas – que a mãe produzia artesanalmente –, ou amendoim.

Hoje, Cristiano segue sozinho na sua motocicleta. Mas a distância percorrida continua grande – afinal, o trajeto inclui percurso à pé – e o negócio é basicamente o mesmo: no lugar das rosas, o pão – feito por sua esposa – e ainda o amendoim.

Da infância à maturidade, ele conquistou a moto, um carro e uma casa. O trabalho quando menino, na avaliação de Cristiano, não o prejudicou. Questionado se sobrava tempo para brincar, ele garante que sim. “A gente brincava e descansava para estar bem para a noite”.

Sustenta ainda que ele e os irmãos “entendiam dos compromissos”, quando a pergunta foi sobre o estudo. Mas admite: só concluiu o segundo grau aos 21 anos, quando já tinha idade para estar prestes a se formar em uma faculdade.

“A gente tem objetivos e o compromisso era meu, não é?”, ele completa, sugerindo que estudar era uma responsabilidade apenas sua. Um desejo que, segundo ele, nos dias de hoje é latente. “Tenho vontade de fazer uma faculdade de gestão empresarial”.

Cristiano cresceu vendendo amendoim nas ruas de Cuiabá e sustenta: não se sente prejudicado (Ednilson Aguiar/ O Livre)

Outros Cristianos

O coordenador-geral dos Conselhos Tutelares de Cuiabá, Davino Mário de Arruda, confirma que, em linhas gerais, quando uma criança é vista fazendo trabalho de vendedor ambulante nas ruas, há um adulto “monitorando” a  atividade.

Quase sempre esse adulto é o pai ou a mãe. Conforme o conselheiro, o restante da sociedade costuma ser conivente. “É muito raro chegar uma denúncia de trabalho infantil. Eu acredito que essa falta é porque as pessoas não têm consciência sobre isso”, Davino avalia.

“Em diversas situações em que fizemos blitzes educativas, distribuindo panfletos que alertavam até que se tratava de um trabalho análogo à escravidão, muita gente dizia que não queria nos ouvir, porque preferia ver essas crianças trabalhando do que fazendo coisas erradas na rua. Nós ainda temos uma cultura muito retrógrada nesse sentido”, ele completa.

Davino lembra de uma única abordagem nos seus quatro anos de trabalho – e revela que casos assim são encaminhados para a Vara da Infância e Juventude. Os pais acabam acusados de negligência e exploração. Mas encontrar essas pessoas é difícil. Segundo o conselheiro, quando uma (rara) denúncia chega, quase sempre a equipe não consegue alcançar o grupo de vendedores mirins a tempo.

O Conselho Tutelar atua em regime de plantão durante a noite, o horário em que essas famílias costumam trabalhar. São dois conselheiros, um motorista e um monitor de apoio para percorrer todos os 3.292 quilômetros quadrados da Capital.

“Quando a gente chega [no local da denúncia], já não encontra mais ninguém”, diz Davino, garantindo que o problema não é falta de pessoal no Conselho Tutelar, mas as grandes distâncias de um bairro para outro em Cuiabá.

Cristiano lembra de um dia – na Avenida do CPA – ter a família abordada por uma pessoa que se identificou como conselheiro.

“Eu e meu irmão estávamos oferecendo amendoim, quando um cara puxou meu pai pelo braço dizendo que era do Conselho Tutelar e que não deveríamos estar ali. Fui para cima dele para defender meu pai”.

Uma sociedade dividida

O empresário Hassan Fares, do tradicional restaurante árabe Habibs – há mais de 20 anos funcionando na Praça Popular –, conhece Cristiano desde pequeno e elogia seu esforço. “Sempre foi muito educado e responsável”.

Mas não nutre a mesma admiração em relação aos vendedores mirins da atualidade. “Alguns chegam a te intimidar se você pede que se afastem. Já chegaram a quebrar uma vidraça aqui, em uma briga entre eles”, justifica.

Segundo Fares, eles vendem rifas, trufas, balas e muitos aparentam estar abandonados. O empresário cobra uma atitude das “autoridades”. “É preciso que haja um toque de recolher para essas crianças”, sugere.

Cliente de outro estabelecimento da praça, Gislaine de Paula Souza afirma ficar impactada com a quantidade de menores perambulando pelas ruas da Capital durante a madrugada.

“Vejo crianças de 10 anos. Se fosse um filho meu eu não deixaria”, ela afirma, dizendo também já ter constatado que muitos pais “usam os filhos” para o trabalho. “Fico com dó dessas crianças. Acho que a Justiça está sendo falha”.

Mas Gislaine – assim como Hassan Fares – é seletiva. “Dia desses acompanhei um caso em Várzea Grande. Um senhor tinha um carrinho de lanches e os filhos trabalhavam com ele. Eles estudavam em escola particular, inclusive, mas o Conselho Tutelar foi lá e proibiu que os filhos o ajudassem – e assim o negócio fechou”.

O próprio Cristiano, quando perguntado, diz acreditar que foi válido trabalhar desde cedo. “Se você não está ocupado, se ocupa com coisa ruim. A educação e o incentivo que meus pais me deram me ajudou muito. Agradeço a eles por me manterem ocupados e terem me ensinado a valorizar os esforços e quanto vale o dinheiro”.

O empresário Hassan Fares viu Cristiano crescer vendendo amendoim nas ruas de Cuiabá (Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

Debate nacional

A discussão sobre o trabalho infantil voltou à tona há cerca de uma semana, quando o presidente Jair Bolsonaro (PSL) criticou o, segundo ele, excesso de direitos e poucos deveres da juventude.

“Eu, com 9, 10 anos de idade, quebrava milho na plantação e quatro ou cinco dias depois, com sol, você ia colher o milho. Olha só, trabalhando com 9, 10 anos de idade, na fazenda, não fui prejudicado em nada”, ele disse, completando acreditar que “o trabalho não atrapalha a vida de ninguém”.

Dias depois, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente, também por meio de redes sociais iniciou uma espécie de campanha. Citou como exemplo artistas que começaram a trabalhar ainda crianças e incentivou outras pessoas a contarem experiências que tenham vivido na infância.

A legislação brasileira proíbe que menores de 16 anos trabalhem, exceto na condição de aprendiz. Esta só pode ser exercida a partir dos 14 anos. E o renascimento do debate sobre isso fez o Ministério Público do Trabalho (MPT), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e outras instituições emitirem uma nota conjunta de repúdio.

“O fato de haver exemplos de pessoas que foram submetidas a tais práticas, sem que consequências diretas ou perceptíveis se apresentem, não elimina a constatação empírica, fática, de que o trabalho antes da idade permitida traz prejuízos de diversas naturezas, não podendo o trabalho nessas condições, em nenhuma medida, ser naturalizado, tolerado ou estimulado”, diz trecho do documento.

Mitos e verdades

O Ministério Público do Trabalho de Mato Grosso também dá visibilidade ao assunto. Circula pelas redes sociais um vídeo animado, que é uma adaptação de uma série em quadrinhos já lançada pelo MPT. Ela desvenda alguns mitos, tais como “trabalhar cedo para ajudar em casa não prejudica criança alguma”.

Lucas é uma criança que trabalha em uma feira para ajudar o pai, até se deparar com Larissa, personagem que questiona o peso das sacolas que o menino carrega, além das consequências do trabalho precoce na vida dele.

Considerando que muitas crianças são exploradas e até forçadas ao trabalho infantil, o MPT quer enfatizar que a exposição a riscos físicos e psicológicos pode prejudicar o desenvolvimento e o futuro das crianças.

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