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Roberto Campos, um cuiabano que ganhou o mundo

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Roberto Campos, um cuiabano que ganhou o mundo

Agência Estado

Roberto Campos

 

Da reorganização geopolítica e econômica pós-Segunda Guerra, com a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), ao processo de industrialização de um Brasil rural e semialfabetizado, sua vida foi uma travessia, não raro turbulenta, pelos fatos mais marcantes do século 20.

Economista, escritor, diplomata, articulista, ministro, senador, deputado federal e imortal da Academia Brasileira de Letras, Roberto de Oliveira Campos ganhou notoriedade como um controvertido ícone do pensamento liberal, mas seu papel nunca esteve limitado ao campo das ideias.

Ao longo de 60 anos de vida pública, teve participação ativa na criação da Petrobrás, da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE, o atual BNDES). Como embaixador e diplomata, representou o Brasil em discussões que ajudaram a moldar o mundo tal como é hoje.

Uma trajetória singular que poucos poderiam prever naquele 17 de abril de 1917, há exatos 100 anos, quando o filho do professor Valdomiro Oliveira Campos e da costureira Honorina de Oliveira Campos veio ao mundo na distante, quente e poeirenta Cuiabá.

“Eu completei dez anos em seminário católico, graduando-me em Filosofia e Teologia. Foram anos de retiro e castidade, durante os quais acumulei um enorme direito de pecar, que nunca pude usar, por falta de cooperação complacente

Era uma família de poucos recursos, que se tornariam ainda mais escassos com a morte de Valdomiro, cinco anos depois. Sem alternativa, Honorina se viu obrigada a se mudar, levando consigo Roberto e a irmã mais nova, Catarina, para terras de parentes no Pantanal da Nhecolândia, em Corumbá, hoje em Mato Grosso do Sul.

“Na minha ótica de primeira infância, o Pantanal me parecia mais perigoso que belo. Tinha medo de cobras (a jararaca, a cascavel e a sucuri) e das onças (parda e pintada), então abundantes nas várzeas e capões. A suprema forma de coragem era a caçada de onça com zagaia. Também levara o susto da piranha, quando entrei desprevenido na baia adjacente à Fazenda Alegria. Quase perdi o dedão do pé direito. Era infernal o incômodo dos mosquitos, os pólvoras e as mutucas”, relembraria, em trecho do livro de memórias “A Lanterna na Popa” (Editora Topbooks, 1994).

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Roberto Campos

Diplomata: participação em discussões que resultaram na criação da ONU, FMI e Bird

Campos tinha 10 anos quando seguiu para estudar em um seminário em Guaxupé, município no sul de Minas Gerais, na divisa com São Paulo. Mais do que a vocação religiosa, o que atraía jovens de baixa renda àqueles locais era a oportunidade de educação de qualidade.

“Eu completei dez anos em seminário católico, graduando-me em Filosofia e Teologia. Foram anos de retiro e castidade, durante os quais acumulei um enorme direito de pecar, que nunca pude usar, por falta de cooperação complacente”, diria, décadas mais tarde.

Em 1937, Campos deixou o seminário e mudou-se para Batatais (SP), onde conheceria Estela, futura mulher e mãe de seus três filhos. Dois anos depois, estava no Rio de Janeiro, onde prestou concurso e foi aprovado em primeiro lugar para o Itamaraty. Começava ali uma longa e prolífica carreira como diplomata, na qual começou a se destacar logo em seu primeiro posto no exterior: a seção comercial da Embaixada do Brasil em Washington (EUA). O ano era 1942, auge da Segunda Guerra Mundial.

Em julho de 1944, fez parte da delegação brasileira enviada à histórica conferência internacional realizada em Bretton Woods (EUA). “Os acordos então estabelecidos deram origem ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird)”, diz trecho do Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós-1930, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Campos graduou-se em economia pela Universidade George Washington e foi transferido para Nova York em 1947, onde passou a integrar a representação brasileira na ONU. Nos dois anos e meio em que permaneceu na cidade, concluiu uma pós-graduação em Economia pela Universidade de Columbia.

De volta ao Brasil, trabalhou na chancelaria do Itamaraty e fez parte da assessoria econômica no segundo governo do presidente Getúlio Vargas -onde ajudou a elaborar o anteprojeto de criação da Petrobras.

Em 1951, foi convidado a integrar, como conselheiro econômico, a Comissão Mista Brasil-Estados Unidos de Desenvolvimento Econômico, cujo trabalho resultou na criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) – hoje, o BNDES.

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Roberto Campos

Em Brasília, ajudou a formular o Plano de metas de JK

De julho de 1952 a julho de 1953, Campos foi diretor econômico do banco e, em 1958, chegou à presidência da instituição. Antes disso, ajudou a formular o famoso Plano de Metas de Juscelino Kubitschek.

Em 1961, foi nomeado embaixador em Washington. Ficou no posto até agosto de 1963, quando pediu demissão por discordar frontalmente dos rumos do governo de João Goulart.

Apoiou o golpe militar de 1964. Convidado, aceitou fazer parte do governo do general Castello Branco, como titular do Ministério Extraordinário para o Planejamento e Coordenação Econômica.

Em seu período à frente da pasta, surgiram o Banco Central, a Embratel, o Sistema Financeiro de Habitação, a Caderneta de Poupança, o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e a correção monetária. No período, a defesa de mais investimento estrangeiro no país lhe rendeu a alcunha de Bob Fields – uma tradução literal de seu nome para o inglês.

“As nações, como os indivíduos, têm o seu momento de verdade. O momento em que, afastadas as ilusões, têm de reexaminar seus propósitos e corrigir seus métodos, a fim de controlar o destino, ao invés de se escravizarem às circunstâncias”, disse, ao deixar o cargo, em 1967.

Depois de uma curta experiência na iniciativa privada, como presidente do Investbanco e da Olivetti do Brasil, no final de 1974 Campos foi nomeado embaixador em Londres, onde permaneceria até 1982. No período, acompanhou de perto as reformas liberais capitaneadas pela primeira-ministra Margaret Thatcher.

Após o fim do bipartidarismo e a gradual abertura política no Brasil, voltou ao país em 1981 para articular uma candidatura ao Senado por Mato

“As nações, como os indivíduos, têm o seu momento de verdade. O momento em que, afastadas as ilusões, têm de reexaminar seus propósitos e corrigir seus métodos, a fim de controlar o destino, ao invés de se escravizarem às circunstâncias”

Grosso no ano seguinte. Filiado ao Partido Democrático Social (PDS) foi eleito com 147.203 votos.

Anos depois, Campos definiria sua passagem pelo Senador como “uma sucessão de batalhas perdidas”. “As principais foram a batalha da informática, a batalha contra a ortodoxia do Plano Cruzado e a resultante moratória, e a batalha contra a Constituição brasileira de 1988”, afirmou.

Como político, seria eleito mais duas vezes como deputado federal, mas pelo Estado do Rio de Janeiro. No período, manteve ativa produção literária e intelectual, tendo ocupado espaço como articulista em jornais como a Folha de S. Paulo.

“A verdade é que nosso grave subdesenvolvimento não é só econômico ou tecnológico. É político. Somos um gigante preso por caguinchas [covardes] dentro de estruturas disfuncionais. A máquina político-administrativa que rege hoje nossos destinos é uma fábrica de absurdas distorções cumulativas”, escreveu, em um artigo que batizou como “Repetindo o óbvio”.

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Roberto Campos

 

Sua chegada à Academia Brasileira de Letras gerou muita controvérsia. A cadeira de nº21 era ocupada pelo escritor e dramaturgo Dias Gomes, ligado à esquerda e aos movimentos populares. Em sua posse, Campos abordou a polêmica e lamentou não ter tido a oportunidade de um “encontro de fim de tarde” com seu antecessor.

“Certo estou que ao fim de algumas rodadas, talvez na curva do conhaque, estaríamos do mesmo lado da cerca, concordando com as seguintes premissas:

– “Todas as revoluções passam” e, como nos alertou Franz Kafka, “só fica o lodo de uma nova burocracia”;

– Só há uma coisa errada com a palavra revolução. É a letra R;

– Há gente demais levantando muros e gente de menos construindo pontes”, disse, com bom humor.

Campos morreu de infarto agudo do miocárdio no dia 9 de outubro de 2001, na cidade do Rio de Janeiro. Em razão dos 100 anos de seu nascimento, a Fundação Alexandre de Gusmão, com a organização do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), promove nesta terça-feira, no Palácio Itamaraty, no Rio de Janeiro, o seminário “Roberto Campos: o homem que pensou o Brasil”.

Em Mato Grosso, em artigo recente, o jornalista Onofre Ribeiro lamentou que o centenário de Campos seja “praticamente ignorado”. “Ao longo da sua vida [Campos] sempre foi taxado de diversos rótulos pelas esquerdas brasileiras. Contra elas Roberto Campos sempre atirou pesado e elas nunca souberam defender-se das suas balas de canhão. Intelectual respeitado no mundo inteiro, no Brasil sofria ataques temperamentais de pouca consistência contra os quais nunca gastou tempo discutindo”, escreveu.

Uma evidência desta circunstância veio logo após o lançamento, em 1994, de “A Lanterna na Popa”, obra de 1.400 páginas que se tornaria um surpreendente best seller. À ocasião, em um bilhete manuscrito ao editor do livro, José Mario Pereira, o lendário editor Enio Silveira, comunista que chegou a ser preso durante a ditadura militar, elogiou enfaticamente o trabalho: 

 

Enio silveira

 

“Meu caro José Mario:

Agradeço-lhe muito pelo volumoso presente de fim de ano, mas meu agradecimento seria apenas formal se eu não lhe dissesse que Roberto Campos confirma sua notável capacidade redacional nesse livro de memórias publicado por você. Ainda que nossas visões do mundo raramente coincidam, reconheço que muitas vezes meus preconceitos se antepuseram a julgamento equilibrado. Seja como for, você lançou um documento de relevante importância histórica, sociológica, política e econômica.

Meus parabéns, e os votos de novos êxitos em 95.

Com afetuoso abraço, seu colega e amigo

Ênio Silveira”.

 

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