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Reforma de praças: especialistas criticam a descaracterização do patrimônio de Cuiabá

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Reforma de praças: especialistas criticam a descaracterização do patrimônio de Cuiabá
Praça Alencastro (Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

No ritmo do aniversário de 300 anos da capital mato-grossense, a Prefeitura de Cuiabá vem anunciando desde fevereiro obras de restauração nas praças do Centro Histórico, com a proposta de “reocupar espaços e garantir qualidade de vida” na região. Mas o resultado das intervenções – consideradas reformas e não revitalizações – têm desagradado arquitetos, historiadores e ativistas culturais, que apontam um processo de perdas históricas e descaracterização do patrimônio, diante da opção por uma arquitetura “comercial”.

Praça Alencastro, Praça da Ipiranga, Praça da Mandioca e Praça Nosso Senhor dos Passos foram alguns dos projetos já executados, segundo representantes do município, aprovados desde 2014. A Praça Dr. Alberto Novis será entregue em agosto e, na sequência, a Praça Caetano de Albuquerque.

Segundo a assessoria da prefeitura, já foram entregues 90% das obras de requalificação – concluídas com financiamento do Governo Federal, por meio de um convênio entre a Caixa Econômica e Ministério da Cultura. No segundo semestre de 2018, outra ordem de serviço prevê reformas das praças da República e da Maria Taquara.

Praça Dr. Alberto Novis (Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

Mas, para o arquiteto especialista em Patrimônio Histórico Robinson Araújo, nada de significativo mudou na estrutura dessas praças. As pinturas dos históricos coretos e peças históricas, como o chafariz – que com o alerta de ativistas, por pouco, não foi retirado na Ipiranga – para ele só descaracterizaram a identidade dos espaços que abrigaram movimentos culturais de várias épocas. A mesma consequência têm os novos nomes, a uniformização dos pisos e adesão de “ornamentos fakes“, como denomina o arquiteto e, que, a prefeitura chama de nova roupagem.

“Eles pintaram o chafariz de uma época que nem existia tinta. O que eles tinham que ter feito? Tirado a camada de tinta para voltar à original e proteger. Mas não, pintaram de preto. Talvez se eu não fosse arquiteto eu acharia bonito, porque está na mão do ‘eu acho’. Não existe embasamento cultural, Cuiabá está virando Dubai, faz o que está na moda”, afirma Araújo.

A propósito, uma das importantes praças, a Alencastro, tornou-se palco de um fenômeno cultural caracterizado pela historiadora Nathalia da Costa Amedi como um dos principais fomentadores do pensamento crítico e porta-vozes da cultura contemporânea em Cuiabá, as batalhas de rima. A Batalha da Alencastro, o maior encontro de rap freestyle da cidade, no entanto, migrou para a Praça da República devido a conflitos com a equipe de segurança privada contratada pela associação de comerciantes da região após as obras. E a tendência é a situação se polarizar ainda mais, uma vez que a proposta da Prefeitura é a concessão das praças reformadas para o comércio.

Três anos de Batalha Alencastro (Foto: Rodolfo Luiz/Daza Produções)

Para Nathália, se as obras não realizadas para cidadãos, não fazem sentido. “É interessante perceber os jovens ocupando espaços, como a Praça da Mandioca, jovens que utilizam as manifestações artísticas com tom mais politizado, como ocorre nas batalhas de rima, e as iniciativas do pessoal do Slam do Capim Xeroso e dos skatistas que circulam diariamente pela cidade. Uma população jovem, periférica (mas não só), que de repente vai para as praças centrais para levar cidadania, tratando de temas como a violência, preconceito, identidade de gênero e sexualidade, em uma nova forma de fazer político, utilizando como canal a poesia marginal”, avalia.

“Você vê uma tentativa de restauração, especialmente do Centro Histórico, mas que vem resultando na descaracterização desses símbolos e lugares de memórias (além das praças, a região do Porto). A cultura local passou por transformações ao longo do tempo. O poder público tenta “resgatar” através do que eles chamam de reforma, revitalização e restauração, algo impossível de acontecer que é o resgate de uma identidade cuiabana. Que identidade é essa frente a uma população tão diversa culturalmente falando? Pouco do que restou patrimônio cultural, material e imaterial está em alguns prédios e casarões e nos museus que em sua maioria estão fechados para visitação pública”.

Praça Alencastro (Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

“O que Cuiabá oferece para os turistas nacionais e internacionais? O que os atrai? Ninguém vai visitar a cidade para ver viaduto ou VLT. As pessoas se interessam pela história do lugar, sua população, cultura local e seu patrimônio material e imaterial que é diferente dos outros lugares. Com a verba que vem para os 300 anos, para investimento em turismo, o que vai ser feito? Essa é a uma questão a ser debatida por amplos setores da sociedade de forma coletiva e planejada. Essas obras não têm sentido se não for pensada na qualidade de vida e no bem-estar da população como um todo”, endossa a historiadora.

A descaracterização em novo ciclo

Robinson Araújo explica que a descaracterização da cultura cuiabana já vem de ciclos arquitetônicos, motivados por processos de colonização. Assim como Nathalia Amedi, ele acredita essas mudanças se pautam na ideia de “modernização” da cidade.

Historicamente isolada, Cuiabá mantinha uma arquitetura bandeirante e um modo de vida colonial que predominaram até a Guerra do Paraguai, quando a cidade passou a incorporar uma estética europeia. Nessa época, os beirais dos telhados começaram a ser substituídos por platibandas que distinguiam classes sociais.

Robinson Araújo (Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

Já durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, a moda era a art déco, transição entre uma arquitetura mais rebuscada e detalhada, como o movimento neoclássico e a simplicidade do modernismo. “Foi um período que desenvolveu muito a arquitetura, mas as obras foram enxertadas. Você colocava um prédio art déco em Cuiabá e era lindo, mas não tinha nada de cuiabano”, explica Robinson.

Diante da inevitável incorporação de culturas vizinhas em um contexto mundial de globalização, para Robinson o limite está no abandono da memória coletiva e das peculiaridades do modo de vida local.

“Vamos supor que você conheceu uma pessoa e, para agradá-la, você começa a seguir o ritmo de vida dela e daqui a pouco não tem mais nada seu. Cuiabá está deixando de ser ela mesma e esquecendo o que foi. Imagina se você chegasse para arrancar o chafariz da Ipiranga em outra época? O prefeito seria arrancado de lá. Hoje o pessoal pensa ‘que trambolho, porcaria’”, exemplifica.

Praça Alencastro em meados de 1970 (Fonte: Acervo Almanaque de Cuiabá)

Isso tudo acontece em um contexto em que a maioria dos museus históricos da cidade estão fechados e centros culturais e casarões, como a Casa de Bem Bem, estão se deteriorando. “Hoje as pessoas chegam na região histórica e não reconhecem mais nada. E eu falo isso por mim, não fui criado para entender Cuiabá e em algum momento das minhas escolhas eu passei a me identificar com a cidade”.

Arquiteto graduado pela UFMT, sua primeira especialização foi voltada a construir um currículo atrativo para o mercado na área de Conforto Ambiental. Depois que se tornou servidor da Secretaria de Cultura (SEC) e passou a estudar processos de tombamento, especializou-se em Patrimônio Histórico, diante do sentimento de responsabilidade com as novas informações. Sobre isso, ele conclui:

“Tudo é justificado na modernização. Nesses 300 anos a gente está sofrendo um novo processo e as praças são um sinal disso. Qual o critério para se elaborar os projetos? o que há de cuiabano nas praças? Não precisa ser antigo, pode ser atual, mas poderia ser cuiabano”.

Praça da Mandioca (Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

Já no final do século XIX e início do século XX, Nathália Amedi – que é mestre em História com estudo sobre a modernização de Cuiabá pós divisão do Estado, em 1977 -, aponta que as obras de modernização da cidade se intensificaram para assegurar a condição de Cuiabá como capital e, depois, para se manter enquanto Estado dividido.

“É algo que já vinha acontecendo muito antes. Cuiabá, como viveu boa parte do século 20 correndo o risco de perder a condição de capital para Campo Grande, fez de tudo em obras, por ser uma cidade mais antiga”.

Em uma história mais recente, ela também ressalta que sediar a Copa do Mundo de 2014 trouxe para os cuiabanos uma esperança de desenvolvimento e globalização, justificando diretamente as novas intervenções. “Mas hoje sabemos que não foi nada disso. A cidade vem sofrendo com obras desordenadas que cortam a cidade e não pensam nas pessoas, em quem ocupa esses espaços”.

Praça Ipiranga (Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

Formação e vivência 

“Eu não vejo maldade nos projetos das reformas, quem faz acha que está fazendo melhor. A formação em Arquitetura é que está ficando muito superficial. Falta de conteúdo estético. É uma arquitetura comercial, simples e rápida”, alerta Robinson. Ele acredita que o problema começa na falta de formação cultural e histórica, não só em Cuiabá.

“As nossas lideranças têm cada vez menos conhecimento da nossa região; discutir cultura está se tornando supérfluo. Não dá dinheiro, visibilidade, só é bonito quando tem um evento”, critica, baseado em suas experiências com o poder público.

Ele defende que, ao passo da superficialidade, o número de profissionais no mercado da arquitetura vem dobrando nos últimos anos, os cursos se multiplicando e, com tanta formação, não é mais necessário “pousar” projetos com profissionais de fora. Assim, ressalta-se a necessidade de embasamento empírico, do contato com a cidade na elaboração dos projetos de restauro.

“Precisa ser alinhado com o ritmo da cidade. Pode ser um projeto novo? Uma praça contemporânea? Pode, mas que seja alinhada com a cidade, não um projeto de papel e imposto, com conceitos abstratos e muito distantes da realidade cuiabana”.

Estação Alencastro (Foto: Ednilson Aguiar/ O Livre)

Na mesma “cidade verde” que já foi arborizada, com casarões frescos de jardins amplos ao fundo, refletindo a essência, o ritmo de vida e clima da cidade, se tornou necessária a construção de uma Estação Alencastro, climatizada artificialmente, em forma de contêiner.

“Na década de 1960, a Praça Alencastro era dos ricos e a Praça da República do povão. Em algum momento ela se tornou mais popular e parece que eles querem esconder. Colocam um ponto de ônibus que parece um muro e você não vê mais aquela praça como pedestre. Será que não tinha outro jeito de fazer? Outra posição que respeitasse o Centro Histórico, uma região sagrada, de onde a cidade se desenvolveu”, questiona.

“Quem atua no espaço urbano tem que estar inserido nele. O ator público está muito distante da sociedade, não está mais conseguindo entender o que a sociedade é, o que a sociedade reclama”, complementa. E de forma cantada, falada, declamada e rimada, reclama:

PachaAna também foi a representante do Slam do Capim Xeroso, campeonato de poesia que acontece na Praça da Mandioca, no Slam BR

Reforma pra quem?
Quem é que tá bem???
Despejam quem já não tem casa
Como empurrar a sujeira pra debaixo do tapete
Pra muitos é uma obra prima, mas é só um macete
Que pra eles já é sina!
Tapar o sol com a peneira, e que sol!
Parece até brincadeira, mas não é
Enquanto uns não tem nem o que calçar no pé, outros fazem projetos pra inglês ver
E os nossos??? A mercê!
Falta cultura, falta lazer
Falta saúde, e pra muitos falta até o que comer
Mas reformar a praça e colocar chafariz novo é o que o governo sabe fazer
Vai entender!
Afinal, será que é esse o dever???
Não sei, mas queria saber! 

(PachaAna, rapper e idealizadora da Batalha das Minas, realizada na Praça Ipiranga)

Diante dos questionamentos, a reportagem conversou com o Secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano, Juares Samaniego, para entender como os projetos de reconfiguração das praças do Centro Histórico foram planejados e executados. Confira a entrevista na íntegra AQUI.

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