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“Parece que apagam a gente”, diz Eduardo Ferreira sobre Lado B de ser “multi”

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“Parece que apagam a gente”, diz Eduardo Ferreira sobre Lado B de ser “multi”
(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Ser multifuncional na contemporaneidade pode ter lá suas mazelas. O artista Eduardo Ferreira, acredita que os vários talentos possam ter-lhe ter trazido bênçãos e, maldições também. A impressão dele é de que a imersão por vários segmentos possa tê-lo deixado flutuando entre várias artes. Mas isso é apenas uma angústia de alguém que há décadas se doa incondicionalmente à cultura mato-grossense.

No quintal de sua casa já bastante conhecido por artistas e formadores de opinião e roteiro cultural para os que estão de passagem, ele recebeu a reportagem do LIVRE. O cenário repleto de suas obras – combinadas às da esposa, Anna Amélia Marimon – foi encantado por suas composições que ganham melodia no dedilhar da viola caipira, velha companheira.

(Foto:Ednilson Aguiar/ O Livre)

Como norte para esta entrevista já sabíamos o que em síntese perguntar: “Mas o que é que o artista, Eduardo Ferreira, ainda não fez pela cultura mato-grossense?”. Ficamos imaginando como deve ser árdua a tarefa de acomodar todas suas contribuições – em diversos formatos, suportes e linguagens artísticas – em um currículo.

São incontáveis e dificilmente estarão todas reunidas em uma única plataforma. Muitas delas, já até se perderam no complexo emaranhado de ideias que se conectam de forma harmônica – e frenética – em sua cabeça branca. Mas a gente estimula, afinal, há muito a ser celebrado e reverenciado quando assunto são seus feitos. Boa parte deles, em prol da produção independente, seja na televisão, artes visuais, no cinema, literatura, performance ou música.

O outsider é voz de uma geração altamente produtiva que se estabeleceu em Cuiabá, oriunda de várias regiões do país, mas que no caso, pode-se encher a boca para dizer, que ele é um expoente das artes mato-grossense. Nascido em Guiratinga e depois de morar um certo tempo no Rio de Janeiro, chegou a Cuiabá e desde que pisou este chão – que diz ter escolhido para morrer – junto a outros parceiros já desde a década de 1980, ajudou a revolucionar a cultura local e escreveu seu nome não em um segmento, mas pelo visto, em muitos deles.

Hoje, ele mantém junto a outros colaboradores, o portal Cidadão Cultura e na Rádio AL, já coleciona mais de 120 entrevistas com músicos locais, ajudando a contar um pouco da história da música contemporânea de Mato Grosso. Ah! E vale ressaltar, muita coisa ficou de fora. Uma entrevista é pouco. Muita coisa não foi mencionada já que até ele parece ter perdido o domínio de tantos projetos. Ficou de fora a exemplo, iniciativas em favor da divulgação de manifestações culturais underground e populares tradicionais, como o lambadão, e da cultura digital na defesa do midialivrismo.

Até “fincar o pé” em Cuiabá, por onde você passou?
Nasci em Guiratinga, em 1961. E fui morar em Rondonópolis e daí fui para Uberlândia, fiquei cinco anos no Rio e vim para Cuiabá. E daqui não sai mais. Um lugar que eu costumo dizer que é onde escolhi para morrer. Vim para cá em 1982. Foi logo após a anistia. Passei por todo aquele processo, fazendo faculdade no Rio e lá já tinha um grupo de poetas, de músicos dentro da Gama Filho, onde eu fazia arquitetura. Fui até o quarto ano e envolvido com militância, movimento estudantil, retomada da Une. A gente montou o primeiro centro acadêmico da faculdade de arquitetura. Lá conheci muita gente, como o Aldo Rabelo, presidente da Une à época.

E é assim que nasce o Eduardo multiartista?
Já nesse período, integrei uma coletânea de poetas. E daí começou essa história de poesia e música. Na realidade a música já vinha da infância. Em Guiratinga estudei piano clássico quando era garotinho. Violão clássico também e além disso, sempre tive um contato muito forte com a literatura. Ah, claro, e o desenho também. Parei na infância e retomei aos 50 anos. Ficou guardado em uma gaveta. Foi Anna [Marimon, a esposa] que me estimulou a voltar a pintar.

Eduardo Ferreira e a companheira de uma vida toda, Anna Amélia, em uma das centenas de apresentações do Caximir

Ao que parece, Cuiabá acabou te fisgando, não é?
Depois de voltar da faculdade de arquitetura, encontrei meus primos que estavam todos aqui.Eram todos professores universitários. Eu só ficaria por dois meses e já voltaria para o Rio para tentar uma outra faculdade, História, mas aí, eu desisti. Encontrei a galera. Conheci o Pio, o Toninho, a Tereza Aguiar, as mineiras, foi um período muito forte em Cuiabá. E daí veio Amauri Lobo, Luiz Renato, Antônio Sodré. Aí descambou não quis mais ir embora.

E foi desse encontro que nasceu a Caximir?
Exatamente. Os primeiros encontros aconteceram na casa do meu pai, aqui na rua 43 [do Boa Esperança]. Encontrei o Antônio em um debate sobre poesia marginal. Fui com meu tio João Neto que era acadêmico também. O Antônio entrou no final, fez uma performance, falou uns poemas e eu pensei, quem é este cara. Pirei nele. Ele era bem esquisito. Ele dizia, Eduardo, se eu tivesse demorado um pouquinho mais para nascer, eu nasceria babando. Brincava muito com ele. Eu já tinha conhecido o Toninho também e começou a ideia de formar um grupo. Como eu vinha do Rio, já tinha tido essas experiências, fazíamos performance também. No lançamento do livro, no Baixo Leblon, com João do Vale cantando. Reunimos a galera na Pizzaria Guanabara, era o point. E eu cheguei aqui eu tava todo envolvido de levar a poesia para o palco e aí juntei com Amauri também, fizemos o saco de gato que circulava em seis bares da época, Money Money, Bar do Léo, uma tal de Ricky, na Isaac Póvoas, e mais dois na avenida do CPA que não me recordo bem.

Primeiros frutos da produção independente. Como foi a “era saco de gatos”?
Fazíamos mil exemplares por semana. Durante três meses, rodados em offset, e fazíamos colagem e diagrávamos e indicávamos a foto para a gráfica. Certa vez fizemos uma foto-novela e o cara da gráfica não conseguiu resolver, quem resolveu foi o Dias-Pino. Colocou a mão na massa com a gente. Ele tinha uma admiração pelo grupo. Quando veio à Literamérica, a primeira coisa que perguntou ao Lorenzo Falcão, que o acompanhava, foi sobre o Caximir. Esse período ficou muito marcado. Eu lembro que em 1999 a gente chegou a fazer 80 eventos no ano.

Como era produzir em uma época em que não se tinha incentivo do poder público?
A gente fazia na unha mesmo. O saco de gatos, a exemplo, vendíamos as margens trocando por publicidade. Além de se pagar ainda sobrava grana. No viés da literatura, começou como um grupo performático ali no clube feminino, na casa da cultura, em 1983. Fui convidado pelo Juarez Copertino e João Sebastião e foi feito o Mecânica da Palavra, e ali nasceu o Caximir, começou como bando gira, nome que Antônio deu e aí ali conheceu o Grupo de Risco: Chico Amorim, Lorenzo Falcão, Maurício Leite. Foi um encontro muito grande. Um marco em Cuiabá.

Você figura dentre os pioneiros do audiovisual mato-grossense. Conte sobre essa fase.
Na década de 80 tiveram início as primeiras produções de audiovisual. Fiz o primeiro em 1988, TX 110 MHZ. Era sobre uma rádio pirata que entrava no ar em Cuiabá e tinha o Antônio Sodré, Maria Ribeiro, Clóvis Irigaray, André Balbino e o Caximir, que tocava na rádio ao vivo. Esse primeiro vídeo foi com uma câmera emprestada da minha irmã, VHS e em Cuiabá, só tinha uma ilha de edição, com o Carlos Katayama, que depois virou Studio 312. O vídeo foi classificado no maior festival do país, numa mostra paralela, Geraldo, o Maldito do audiovisual brasileiro disse à época que ali estava o setor mais criativo e emergente do indie brasileiro. A gente ficou muito empolgado com isso, era um filme caseiro, 17 minutos.

Seria o primeiro filme independente?
Estava começando a produção independente. Não tinha ninguém fazendo nada pelo que eu me lembre. Independente mesmo, acho q foi o primeiro e no MIS (SP) participamos de uma mostra muito legal também. Depois eu fiz o Rinha, que era outra coisa, quadrinhos, GTW tocando ao vivo no Bar do Léo, tinha roubo de carros, André fazia o Subúrbio, Walderez Amaral, participava também. Ela fazia Valentina, com o cabelão punk, visual muito louco. Era curta-metragem. Trash pra caramba, Juarez Copertino já dizia à época que era a melhor coisa que tinha sido produzido aqui. Esse eu o perdi não tenho nem fita, esse eu queria ter. Fiz também o clipe do GTW, o primeiro de massinha e veja só, foi selecionado pela MTV em um concurso de bandas independentes, começo dos anos 90. Capilé Charbel, Rose Pando, Sérgio H e Dezan, Batatinha, dentre outros. Foi a primeira formação da GTW, fiz com o Rodolfo Schaffer, depois fizemos vários, TV Teen [com Otaviano Costa], breaks, entrada e saída era tudo em animação.

E tem muito do Eduardo Ferreira na TV mato-grossense também. Confere?
Pois é, eu tinha sido demitido da TV Cidade Verde, na época era o SBT local, passou um ano, a diretora me liga de novo e diz “chegou o cara pra você fazer o programa que queria, de entretenimento, experimental mesmo, com auditório e tudo. Nascia o TV Teen. Fomos almoçar no Getúlio grill – eu e Otaviano – e parecia que nos conhecíamos há muitos anos. Eu fazia direção de roteiro. Tivemos uma estrutura fabulosa, poucas vezes vi isso aqui. Foi um sucesso, ganhamos um Prêmio do SBT em SP como melhor programa fora do eixo Rio-SP e programa teve um alcance muito grande, repetia, ia via satélite, chegavam cartas para o Otaviano, galera apaixonada por ele.

Tem paixão entre Eduardo Ferreira e Ricardo Guilherme Dicke também, não é?
Então, depois dessa experiência no TV Teen, ajudei a implantar a TV Assembleia Fui diretor de produção e de programação, foi muito legal. Nessa mesma fase, ganhei o Doc TV em 2003/2004, com a história do Dicke, Cerimônias do Esquecimento, uns dos docs mais repetidos pela TV Cultura, até hoje passa e esse filme. Dicke chegou a dizer que eu era o melhor amigo da vida dele a gente teve uns doze anos vivendo intensamente, tenho originais dele.

A produção literária experimental mato-grossense também tem sua contribuição?
Bem, escrevi bastante, tenho alguns livros engavetados, mas um dos grandes destaque é o Eu Noia. O livro tem mais de 7 mil downloads, um fenômeno que nem entendi. O Ricardo Santiago fez uma crítica dez anos depois falando que o livro é o mais experimental de Cuiabá e até hoje ele continua chamando a atenção. É altamente sinestésico, escrevi ofegante.

O que foi a Fábrika?
Foi um coletivo que a gente resolveu criar lá pelos idos de 2000. Cláudio Oliveira, eu, Capilé Charbel, André Balbino, Rodrigo Agnolon e Paola, que continua fazendo trabalhos com Roberto Victório. Era 2003, 2004, eu estava saindo da Assembleia. Era um misto de agência que investia em cultura. Editamos Eu Noia e Oito, do Danilo Fochessato, bem como Dicke, com Deus de Caim. André Balbino também, com seus postais eróticos e outro meu, o Sex Pixels.

Sua vida é inteiramente dedicada a arte. Como ficou a família nessa história?
As crianças cresceram neste turbilhão, com minha família pai e mãe houve ruptura quando larguei a faculdade no Rio e vim pra cá. Mas depois eles assimilarem. Entrei em letras aqui. Eles tinham uma expectativa que eu ia terminar e virar professor, mas não rolou.

A academia não te pegou não é?
Pois é, foram três universidades: Arquitetura, Letras no Rio e Letras em MT, mas eu tava sempre envolvido com arte ou com comunicação. Logo, fui para jornal, imprensa. Na verdade foi sempre a comunicação que bancou minha vida. TV, rádio e jornal ajudaram a criar meus filhos.

E o que tem por agora [fora apresentações artísticas e o atual trabalho na Rádio da AL?]
Estou escrevendo livros. Alguns em aberto. Terminei um mas não tenho vontade de publicar… Já tem convites de editores, em especial, Santiago, estou trabalhando também em um roteiro de um longa. Até tentei inscrevê-lo no edital da Secretaria de Estado e Cultura, mas paramos sempre na parte de documentação. Acho que primeiro, deveria ser avaliado o mérito, e então, que fosse dado um tempo para gente se arrumar. O Doc TV era flexível nisso.

Na rádio AL, Eduardo Ferreira comanda o programa Sons de Mato Grosso

Fala um pouco sobre produção independente versus incentivo do governo.
A cultura independe de governo. A grande saída da cultura é a liberdade, é a independência. Tenho muito medo do Estado controlando a cultura. A maior liberdade que a gente tem nessa vida, que é se expressar. O dirigismo cultural é perigoso eu tenho muito medo disso. Fica muito no evento, na festa e não vai muito pra frente. Dá para usar outros caminhos, pois a exemplo, fizemos política cultural no Sarau Free. Dali saiu tanta coisa boa tanta gente se potencializou aí, encontrou um jeito de se expressar e pegou um rumo. É assim que se faz política pública sem a presença do Estado, acho que o Estado tem que ser mais um parceiro mas um potencializador das coisas que estão aí, não inventar um modelo.

Você é apresentado com muita frequência como multiartista, mas como o Eduardo se conceituaria?
Eu não consigo me conceituar e não pretendo, não tenho essa ousadia. Na realidade essa coisa de fazer muita coisa ao mesmo tempo é até meio ruim que parece que você não é nada. Quando falam sobre a trajetória de um segmento, citam todo mundo, mas você não é citado. Acho que o povo da música é quem me reconhece mais. Parece que apagam a gente, acho que ser esquecido é muito ruim, lembro quando fiz Cerimônias [o filme]. Eu fiquei muito comovido com a condição dele [Dicke], de ser tão genial, um dos melhores do mundo e ali, auto-exilado aqui e esquecido pelos escritores brasileiros. Eu queria continuar fazendo filmes, eu devo isso demais a ele, mas vou deixar meus livros, isso eu vou.

Pode ser na música, nas artes visuais, cinema ou literatura: tem sempre um pouquinho do talento de Eduardo semeado por aí

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