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Os doutores analfabetos do Brasil

De que serve ao Brasil formar 60 mil mestres se uns 59 mil terminam sem terem desenvolvido conhecimentos mínimos de metodologia de pesquisa?

7 minutos de leitura
Os doutores analfabetos do Brasil
(Foto: EBC)

Olá pessoal. Estamos apresentando uma resenha escrita pelo Prof. Pedro Jorge Pampulim Martins Caldeira, docente da Universidade Federal do Triangulo Mineiro (UFTM). Esse texto é fruto de um intenso debate em um grupo de ciência de WhatsApp vinculado ao movimento Docentes pela Liberdade.

O Prof. Pedro Caldeira é português e um grande especialista em educação infantil e ensino básico.

A resenha é sobre o meu estudo de cientometria, que analisa a possibilidade de o Brasil chegar no último colocado no mundo em impacto científico: “Rumo à lanterninha mundial da ciência?

Ciência desembestada e na contramão

Em uma bela manhã, de muito trânsito, um condutor a meio da ponte Rio-Niterói escuta o seguinte aviso no rádio: “Atenção senhores condutores, está um automóvel em contramão na Rio-Niterói!!!” E ele pensa: “Um? Estão TODOS!!!”

Algo de semelhante se passa com a Ciência brasileira: anda desembestada à solta, em alta velocidade, mas na contramão de quase todos os outros países do mundo. Quase todos? Quase!

Por enquanto, pois, qual Nostradamus catastrofista da Ciência brasileira, o professor Marcelo Hermes Lima vem há uns tempos alertando que o quase irá terminar em 2023, quando todos os outros países grandes produtores de Ciência tiverem ultrapassado o Brasil! Por mim, por favor não avisem o professor Marcelo, acho que será antes, mas eu sigo apenas a minha intuição e ele segue cálculos rigorosos.

Mas adiante, pois o espaço é curto e a tarefa é ciclópica. Sai Presidente, entra Presidente, sai Ministro, entra Ministro, sai Presidente da Capes e entra Presidente da Capes… E plus ça chance, plus c’est la même chose! Sou um observador, por vezes observador-participante, de que quanto mais muda, mais fica na mesma.

Pedagogias falecidas

A Capes, por exemplo, e os seus programas que visam à valorização do professor do ensino básico e à melhoria do ensino básico.

Desde o início do governo do Presidente Jair Bolsonaro, a Capes criou um programa gigantesco com o objetivo de melhorar o ensino de Ciências, incluindo aí uma especialização a distância (em EAD, seguindo a sigla convencional) em rede (com o nome “Ciência é 10!”), integrando umas 20 (para mais) Universidades e Institutos federais e Universidades estaduais para incentivarem milhares (muitos milhares!) de professores de Ciências das redes públicas de ensino básico em nível nacional.

Como observador ou observador-participante, já tive a oportunidade de acompanhar diversos desses projetos e programas do MEC e da Capes: sempre muito grandes, sempre envolvendo dezenas de Universidades/Institutos e milhares de professores em formação: a REde NAcional de FORMação continuada de professores do ensino básico, o Programa Nacional de Alfabetização na Idade Certa ou atualmente a especialização “Ciência é 10!”

Com objetivos bem genéricos, metodologias ultrapassadas ou pedagogias falecidas no século passado… E sem avaliação exterior: quais os resultados atingidos? Que desvios foram ou são ou serão registrados face aos objetivos inicialmente traçados?

(Desconfio mesmo que o estabelecimento dos objetivos iniciais desses projetos seguem o mesmo algoritmo que eu uso quando tento encher o porta-malas do carro quando vou de férias: o que couber vai, o que não couber fica!) (vide “Observação 1”)

A irrelevância da qualidade

A minha experiência mais recente, felizmente já ultrapassada, com a referida especialização confirmou que não há grande preocupação com a qualidade do input e é mais ou menos irrelevante a qualidade do output (pois relevante mesmo será a quantidade de diplomas distribuídos no final do programa): do que tive oportunidade de observar, a probabilidade de os professores orientadores não saberem o que é metodologia de pesquisa é bastante elevada e os professores formandos certamente finalizarão o seu TCC aparentemente de pesquisa, mas sem terem aprendido grande coisa de metodologia científica.

Objetivo: formar muitos milhares de professores de ciências. Como “o Brasil não é para amadores” e “tem a dimensão de um continente”, nunca nada pode ter por objetivo formar 30, ou 100, ou 150: é sempre aos milhares!

Curiosamente, um outro país com dimensões continentais não padece dessa doença: os processos de intervenção em educação são pensados e executados localmente. Chama-se Estados Unidos!

Esse critério da quantidade ainda está bem vivo na Capes. Um exemplo, que bem gostaria que não se concretizasse, é o da formação pós graduada. Metas: formar anualmente 60 mil mestres e 25 mil doutores. Está inscrita no Plano Nacional de Educação, que parece ter de ser executado, doe a quem doer (e doerá sempre aos mais pobres!)

Doutores analfabetos

As métricas estabelecidas são pseudo-marxistas e partem do pressuposto de que da quantidade virá a qualidade! De que serve desses 60 mil mestres uns 59 mil terminarem sem terem desenvolvido conhecimentos mínimos de metodologia de pesquisa? Ou que dos 25 mil doutorados pelo menos 20 mil saírem analfabetos científicos (mas com diploma para serem docentes em programas de pós e orientarem outros coitados sabe-se lá como! Vide “Observação 2”)

E assim, alegremente, conseguimos ter 11 Universidades federais brasileiras entre as melhores 1.200 do mundo! Mas 0 (zero, nem uma única!) entre as melhores 400. Que orgulho, né? Talvez se a União investisse em poucos, mas bons centros de formação pós graduada pudesse conduzir a outros resultados!

A expansão sem critérios de qualidade associados deveria ser estancada e não incentivada por razões regionais. O objetivo poderia ser, antes, colocar em 10 a 20 anos talvez duas, cinco ou mesmo 10 Universidades federais entre as 400 melhores universidades do mundo (a China conseguiu nesse espaço de tempo esse feito – e, curiosamente, também é um país com dimensões continentais!)

Continuar a fazer como se faz é desperdício de recursos (vide “Observação 3”). Até porque é o ensino básico que necessita de maiores investimentos públicos, e não o ensino superior! (vide “Observação 4”).

Finalmente, o governo, por muitos recursos que distribua às Universidades federais (pode até ser mil vezes mais que nos tempos do PT), será SEMPRE odiado e criticado pela esmagadora maioria dos professores universitários brasileiros.

É uma questão ideológica e não de avaliação objetiva da competência governativa! Poderia, sabendo isso, deixar de jogar para a torcida e desenvolver estratégias, táticas, planejamento e planos tendo metas e objetivos adequadamente traçados, relevantes, pertinentes e sustentáveis no médio-longo prazos. Insistir nas mesmas receitas e esperar resultados diferentes não é realista!

E 2023 está aí! Como se diz na terrinha: Quem estiver vivo verá!

Observação 1: É sempre assim? Óbvio que não. A Capes já desenvolveu muitos programas que eram locais. Avaliei como consultor da Unesco um desses programas: mais de 200 projetos concluídos e nem um só com algum tipo de avaliação interna!

Observação 2: Um amável leitor lembrou-me que por aqui é recorrente os estudantes de pós se formarem sem saberem fazer pesquisa. Pois, em outras paragens, os meus primeiros passos na pesquisa foram feitos na graduação. E a metodologia aplicada na pesquisa do TCC já era bem avançada. As disciplinas de metodologia científica não podem ser exemplos de prolixidade inconsequente!

Observação 3: Um outro amável leitor contrapôs que a ênfase deveria ser nos bons programas de pós graduação e não em Universidades, como se o investimento em poucas e boas Universidades implicasse o desinvestimento nas boas pós graduações (especialmente as que se desenvolvem longe dos grandes centros de produção científica no Brasil). Não implica.

Elas não desaparecerão, mas a ênfase deve ser nas poucas e boas Universidades (pois é delas que tratam os rankings internacionais – a Universidade de Oxford, o MIT, a Universidade de Cambridge ou a Universidade e Stanford têm dezenas ou mesmo centenas de programas de pós de excelência, têm dezenas ou centenas de centros de pesquisa de excelência e muitas centenas ou mesmo milhares de pesquisadores de excelência: muitos deles em intensa competição interna!)

Observação 4: Para quem não me conhece: sou contra investimentos públicos em educação, justiça, ciência, tecnologia, segurança… A minha posição aqui é: a haver investimento público, que ele seja feito onde é mais necessário.

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