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Os dois lados da bandidagem no garimpo

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Os dois lados da bandidagem no garimpo

Ednilson Aguiar/O Livre

Garimpo da Serra da Borda, em Pontes e Lacerda

Policiais tiraram 2000 quilos de ouro da Serra da Borda, segundo garimpeiros

A mensagem chega por WhatsApp: “Por enquanto, muita água”, diz. “Ninguém consegue pegar ouro aqui. Ninguém fez nada ainda, ninguém consegue pagar aluguel na rua, não tem dinheiro nem para comer. Agora que as chuvas estão parando talvez alguém faça algum ouro”. Enviada em seguida, a resposta inclui a notícia de que a Secretaria de Estado de Segurança Pública está cercando a área. A retomada do garimpo é iminente. “Ah, não, aí não” – diz o garimpeiro, resignado. Ele pediu para não ser identificado. “Sabe o que vai acontecer? Vai levar um monte de gente para a rua”, afirma. “Como esse povo vai sobreviver na rua? Muita gente não tem nem o que comer”, repete. “Aqui no mato ainda encontra alguém que dê comida para trabalhar e tentar ganhar alguma coisa”. O tom de revolta se eleva. “Vai ficar perigoso, não vai ficar barato, não. Têm dois mil garimpeiros que não tem o que comer na rua. Não tem emprego para quem é sem estudo como nós. Na construção civil, não tem nada. O que vai acontecer?”, ele questiona, emendando uma solução para a pergunta: “Muitos vão virar bandido, muitos vão roubar, e a cidade vai virar o terror”. Em seguida, conclui: “Não é o que ninguém quer. Nós só queremos trabalhar”.

Sentado atrás da mesa bem organizada do seu gabinete, que fica a cerca de 45 quilômetros da Serra da Borda, o promotor de Justiça Frederico César Batista Ribeiro, do Ministério Público de Pontes e Lacerda, não acha que os garimpeiros venham a se tornar bandidos. Na visão dele, muitos já se tornaram. Percebeu isso ao notar um incremento no número de presos no município. “Nós vínhamos com uma média histórica de 150, 170 presos”, disse ao LIVRE. “Após o garimpo temos uma média de 250, até 290 presos”. Segundo ele, o tráfico de armas e entorpecentes e o fluxo de carros roubados para a Bolívia, a cerca de 300 quilômetros do município, contribuem para que garimpeiros que não encontraram ouro migrem para o crime. “Algumas pessoas que vieram de fora acabaram se envolvendo com o garimpo e também com outras modalidades criminosas”, diz Frederico, um promotor jovem de cabelos úmidos e terno escuro. “Isso elevou o problema da segurança pública”.

Mas não só. Segundo ele, a multidão de todos os cantos do Brasil que desembarcou na Serra da Borda à caça do metal amarelo também provocou reflexos em outras áreas. “São vários aspectos de sobrecarga dos serviços públicos”, diz Frederico. “Saturou-se por exemplo a assistência social do município”, prossegue. “Outras pessoas vieram de outros Estados com a ilusão de ficarem ricas, não conseguiram ganhar nada e isso acabou se tornando um problema social para o município, sobrecarregando inclusive a saúde”.

Ednilson Aguiar/O Livre

Promotor de Justiça Frederico Cezar

Frederico César, promotor de Justiça: “Depois do garimpo, número de presos aumentou”

Atualmente, de acordo com o Departamento Nacional de Produção Mineral (DPNM), ao menos duas mineradoras possuem autorização federal para pesquisar uma área de 7.385 hectares entre Pontes e Lacerda e Vila Bela da Santíssima Trindade. São elas: Mineração Santa Elina Indústria e Comércio e Taraucá Indústria e Comércio S/A. Por trás de ambas, como acionista, está o grupo canadense Yamana Gold, sediado no 22º andar de um luxuoso edifício em uma larga avenida de Toronto, no Canadá. Para 2017, eles preveem a produção de 26 toneladas de ouro – boa parte vem de Mato Grosso e Goiás. Nada tiram da serra da Borda, contudo. Não por enquanto. Hoje o ouro que sai de lá acaba quase sempre nas mãos de atravessadores que pagam cerca de R$ 80 no grama.

Segundo um relatório produzido em abril do ano passado pela organização não-governamental (ONG) americana Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional (The Global Initiative against Transnational Organized Crime), existem mais de 75 mil garimpeiros ilegais só na região Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil. De todo o ouro que retiram do subsolo, boa parte vai parar na Bolívia e no Peru, de onde saem para os Estados Unidos e a Suiça, principalmente. Ainda de acordo com o documento, muitos deles são explorados por narcotraficantes e grupos armados. Na Colômbia, por exemplo, o governo estima que as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) obtêm 20% de sua renda por meio da extração ilegal de ouro e da extorsão de garimpeiros. No Brasil, ao que tudo indica, criminosos estão fazendo o mesmo.

Ednilson Aguiar/O Livre

Promotor de Justiça Frederico Cezar

 

No início, segundo Frederico, a invasão da Serra da Borda era basicamente promovida por gente que “queria arriscar a sorte”. “Com o tempo, isso evoluiu para uma ocupação armada, com pessoas mais perigosas”, diz. “Há presença de organizações criminosas no garimpo, até por ser uma região de tráfico de entorpecentes. Isso é de conhecimento do Ministério Público”, continua. “Mas, ressalto, o secretário Rogers [Jarbas, de Segurança Pública], a pedido da promotoria, reforçou a segurança local e até tem mandado com muita frequência unidades especializadas no tráfico”.

Em janeiro, o secretário Rogers Jarbas, em entrevista ao programa O Livre, apresentado pelo jornalista Augusto Nunes na Band Mato Grosso, declarou que uma “milícia armada” havia rendido seguranças de mineradoras e trocado tiros com a Polícia Militar (PM) durante a terceira invasão no local, no fim de 2016. À época, o LIVRE noticiou que a nova ocupação, em 30 de dezembro, havia sido coordenada por um grupo armado de Rondônia que ao menos uma vez prestou serviços de escolta de cargas de drogas para o Primeiro Comando da Capital, o PCC.

“Essa história, vou falar a verdade para você”, conta outro garimpeiro que preferiu não se identificar. “Tem muita coisa envolvida nisso aí e, realmente, a gente falar assim, afirmar o que aconteceu mesmo, a gente não sabe”, prossegue, cauteloso. “Se tem política no meio…”. Outro homem que vive na montanha é mais categórico: “Eram doze os caras das armas”, disse ele. “Vieram três vezes”. Quem eram? “Rapaz, garimpeiro não é”.

No alto da Serra da Borda, diante de uma paisagem que se estende por um pasto plano até a linha do horizonte, um terceiro sujeito que passa o dia cavoucando a terra topa dar um depoimento, igualmente sob a condição de anonimato. “O garimpo tem muita gente boa, mas tem muita gente errada também, com passado sujo”, diz. Peço para contar o que se passou no dia do tiroteio. Enigmático, ele responde: “Essa é a história de um lugar de homens bons, porém pobres, e homens maus muito ricos”. E não diz mais nada.

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Garimpo da Serra da Borda, em Pontes e Lacerda

Quase 26 gramas de ouro: o equivalente a R$ 3300

O buraco é mais embaixo
Alguns acreditam que os garimpeiros dão trabalho para a Polícia, quando, na maioria das vezes, costumavam trabalhar para a Polícia. Se houve um boom no número de presos da cidade, conforme relatou o promotor Frederico, isso talvez esteja relacionado com o fato, narrado por garimpeiros ao LIVRE, de que um grupo de policiais corruptos, em 2015, dedicava-se exclusivamente a prender garimpeiros.

Desencadeada em 6 de novembro de 2015, uma sexta-feira, a operação Corrida do Ouro, da Polícia Federal (PF), desvendou uma quadrilha composta por ao menos quatro policiais civis, um tenente-coronel da Polícia Militar e um vereador. A notícia foi amplamente divulgada à época. Mas pouca gente ficou sabendo em detalhes como era o modus operandi da turma.

Em um parecer de 17 de novembro de 2016, no qual se posiciona a partir de um Habeas Corpus impetrado pela defesa dos policiais Vitor Hugo Pedroso e Everaldo Duarte Rodrigues, a sub-procuradora geral da República, Cláudia Sampaio Marques, revela os meandros da exploração promovida por policiais na Serra da Borda. Segundo ela, um dos líderes era Vitor Hugo, conhecido pela alcunha de “Vitão”. “Nota-se, pelas investigações, que ‘Vitão’ atua cobrando a entrada de outros garimpeiros no local, exercendo segurança particular da área através da empresa Lopes Segurança, que não possui autorização para atuar no ramo de segurança privada”, diz um trecho do documento.

Ednilson Aguiar/O Livre

Garimpo da Serra da Borda, em Pontes e Lacerda

Quente, úmido, sem ar: assim é a vida a 40 metros da superfície

Segundo consta, Vitor, que aparece no Portal da Transparência do governo como investigador lotado em Pontes e Lacerda desde fevereiro de 1985, com um salário bruto de R$ 14 mil, detinha “a posse de buracos no local, terceirizando a extração ilegal de ouro e cobrando um valor fixo diário ou percentual sobre a produção, estabelecendo regras sobre utilização de celulares, aparelhos de filmagem no garimpo, e sobre vendedores ambulantes”.

“Caso houvesse discordância por parte de algum garimpeiro acerca do repasse de valores, Vitor providenciava a sua expulsão inclusive com a utilização de violência e grave ameaça”, escreveu a sub-procuradora. “Eles utilizam de sua condição de policiais para atemorizar os demais garimpeiros para extração ilegal de matéria-prima pertencente à União”. Ainda segundo o parecer, garimpeiros presos nas operações realizadas pela PF relataram que os ‘buracos da polícia’ costumavam ser os mais lucrativos do garimpo. “As informações policiais, interrogatórios e demais documentos evidenciam uma alta lucratividade por parte dos policiais que participavam do grupo criminoso”, diz outro trecho. “Foi especificado também nas informações policiais a dificuldade em se identificar a atuação dos agentes públicos, já que foi instaurada uma verdadeira ‘lei do silêncio’ na região do garimpo, já que os garimpeiros temem por sua vida caso revelem alguma participação dos policiais”.

A partir das denúncias, agentes do Grupo de Investigações Sensíveis da Polícia Federal (GISE) disfarçaram-se de garimpeiros e conseguiram fotografar o investigador Vitor na Serra da Borda. Na sede da Polícia Federal (PF) em Pontes e Lacerda, uma casa sem qualquer identificação – exceto pelas câmeras de última geração instaladas no poste da frente – e que fica atrás do prédio do Corpo de Bombeiros, no entanto, o agente que atendeu a reportagem por meio do interfone não quis revelar detalhes da investigação, embora tenha confirmado que estavam sendo conduzidas por uma equipe de Cáceres. O delegado federal Ronald da Silva de Miranda, que liderou a operação, informou que não pode comentar o caso, que, segundo ele, está sob sigilo.

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Garimpo da Serra da Borda, em Pontes e Lacerda

Garimpo da Serra da Borda, em Pontes e Lacerda

Os garimpeiros, contudo, não se importam em falar. Conquanto que não tenham que dizer seus nomes. “Fizeram muita coisa ruim com garimpeiro aqui”, diz um deles. “Chute, coronhada, tiro no ouvido”. Nas árvores que não eram arrancadas da montanha, segundo disseram, os investigadores instalaram câmeras. A estrada por onde hoje escorre a água da chuva que, como uma cachoeira, vaza dos buracos do chão, foi aberta por retroescavadeiras levadas até lá pelos homens da lei. “Eles tiravam caminhões de terra”, conta o garimpeiro. “Levaram mais de 2000 quilos de ouro daqui”. Outro acrescenta: “Cobravam 10% para trabalhar no buracão. Eram uns quarenta. Não era gente do bem, não”.

Com medo, muitos temiam voltar para a cidade por meio da estrada principal. Embrenhavam-se na floresta por longas horas de caminhada durante a madrugada, uma maneira de evitar os corruptos. “Se achassem uma picareta nas suas coisas, você ia preso”, diz um deles. O pânico havia sido instalado entre os mais pobres. Certa vez, policiais encapuzados pisaram nas cabeças de 100 garimpeiros no posto Rondon, perto das margens do Guaporé. “Eles iam no hotel onde estavam os garimpeiros só para prender todo mundo”, conta. “Por que só aqui em Mato Grosso o garimpeiro é perseguido como bandido? Por que no Pará, em Rondônia, e outros cantos do Estado não é como aqui? Aqui é o único lugar onde o garimpeiro é tirado como bandido, é jogado na cadeia, raspam sua cabeça e te deixam lá mofando. A polícia aqui deixava bandido solto na rua e só perseguia os garimpeiros”. Alguns garimpeiros pobres, flagrados com ferramentas de escavação, permanecem presos porque não têm como arcar com a fiança de R$ 12 mil.

De acordo com os depoimentos de quem gasta os dias na Serra da Borda, a retomada do garimpo depois do tiroteio que ganhou as páginas dos jornais no fim do ano passado contou com a participação dos investigadores corruptos. Na ocasião, um garimpeiro foi atingido por duas balas de borracha à queima-roupa na cabeça. Passou duas semanas na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de Cáceres.

Ednilson Aguiar/O Livre

Garimpo da Serra da Borda, em Pontes e Lacerda

 

No mesmo dia, enquanto algumas testemunhas do garimpo se reuniam com os federais do GISE no pasto que precede a subida da serra, um rapaz levou um tiro no peito. “Botamos ele numa rede e chamamos os bombeiros”, conta. “Os três federais correram pensando que era o povo das armas”. Na Santa Casa de Pontes e Lacerda, posteriormente, um policial apareceu de supetão no quarto da vítima: “’Você estava passando na fazenda e tomou uma bala perdida, está ouvindo? Senão te mato’. Foi o que disseram”, narra um dos garimpeiros que socorreu o rapaz. “A PF mandou duas escoltas para o guri”.

Depois das investigações federais, os corruptos foram presos, outros transferidos, e a rotina no garimpo ficou mais pacata. “Nós proibimos armas aqui porque queremos trabalhar em paz”, disse uma testemunha da PF. “Proibimos maquinário pesado, mandamos tirar uma retroescavadeira. Só pode gerador, martelete e bomba-sapo. Não tem azougue. É proibido arma, proibido crianças e proibido briga”. Ele vai recitando as novas regras do garimpo, até que entristece o semblante, mira os olhos no chão e conclui: “Meu sonho é fazer um curso técnico, mas a gente perde a esperança de o Brasil mudar”. O tempo está nublado na Serra da Borda. O rangido dos geradores não para. “A gente só queria trabalhar em cooperativas, pagar impostos”, continua. “E que uma Caixa Econômica fosse instalada aqui na frente para comprar o nosso ouro”.

Leia as outras reportagens da série:

O sonho dourado vai chegando ao fim na montanha que sangra

Os donos do ouro

 

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